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O cipó da alma da amazônia

O cipó da alma da amazônia

Deputado Moisés Diniz escreve sobre uso milenar do chá em ritos religiosos em vários países da América do Sul. E revela detalhes de um tradição que, pode ser reconhecida, em breve, patrimônio imaterial da Cultura brasileira. Leia.

(Publicado inicialmente no site da Deputada Perpétua Almeida no dia 06 de Agosto de 2008)

Ayahuasca é um termo de origem quéchua, que significa “vinho das almas” ou “cipó dos mortos”, designa o chá feito pelo cozimento de duas plantas originárias da floresta amazônica: o cipó jagube ou mariri (Banisteriopsis Caapi) e as folhas da rainha ou chacrona (Psychotria Viridis).

Aya quer dizer “pessoa morta, alma, espírito” e waska significa “corda, cipó ou vinho”. Assim a tradução, para o português, seria algo como “corda dos mortos” ou “vinho dos mortos”.

A ayahuasca serviu como base para o estabelecimento de diferentes tradições espirituais por comunidades indígenas nos países amazônicos desde tempos imemoriais. Os povos indígenas utilizaram a ayahuasca como um elo imaterial com o divino que estava entre as árvores, os lagos silenciosos, os igarapés. É que, para eles, a natureza possuía alma e vontade própria.

Povos indígenas do Brasil, Peru, Bolívia, Colômbia e Equador, há quatro mil anos, utilizam a ayahuasca em seus rituais sagrados, como o padre usa o vinho sacramental na Eucaristia e os indígenas bebem o peyote nas cerimônias sincréticas da Igreja Nativa Americana.

O uso ritualístico da ayahuasca é bem mais antigo que o consumo do saquê ou Ki, bebida sagrada do Xintoísmo, usada a partir de 300 a.C, feito do arroz e fermentado pela saliva feminina, sendo cuspida pelas jovens virgens em tachos.

A mesma prática é realizada pelas índias da Amazônia, quando produzem a caiçuma da mandioca, bebida ritualística indígena fundamental na dança do mariri e no ´contato´ com os deuses da floresta assombrosa.

As origens do uso da ayahuasca nos países amazônicos remontam à Pré-história. Há evidências arqueológicas através de potes e desenhos que nos levam a afirmar que o uso da ayahuasca ocorra desde 2.000 a.C.

Somente os ´intelectuais de água salgada´, que lêem um tomo filosófico à tarde, bebem ´whisky´ à noite e pegam sol pela manhã, para levantar argumentações contra o uso espiritual da ayahuasca. Não conhecem a força e a beleza da espiritualidade amazônica e indígena.

A utilização da ayahuasca pelo homem branco é uma acolhida da espiritualidade das florestas tropicais, um banho de rio milenar e sentimental do tempo em que os povos amazônicos viviam em fraternidade econômica e religiosa.

Os ataques ao uso ritualístico-religioso da ayahuasca, como bebida sacramental, nos autoriza a afirmar que podem estar nascendo interesses menos inocentes e mais poderosos do que uma simples preocupação acadêmica com a utilização de substâncias psicoativas.

Nunca é bom esquecer que a ayahuasca é uma substância natural exclusiva das florestas tropicais dos países amazônicos e pode alimentar interesses econômicos relacionados a patentes e elevar a cobiça sobre a nossa inestimável biodiversidade.

A ayahuasca é uma combinação química simples e ao mesmo tempo complexa, que envolve um cipó e um arbusto endêmicos do imenso continente amazônico. Simples porque a sua primitiva química material da floresta é realizada por homens comuns, do pajé ao ayahuasqueiro dos templos amazônicos.

Complexa porque envolve a elevação de indicadores psico-sociais de qualidade de vida e ajuda a atingir estados ampliados de consciência dos usuários. Isso por si só já alça a ayahuasca a um patamar superior no plano do controle científico dessas duas ervas milenares.

Assim, a ayahuasca ganha contornos políticos por envolver recursos florísticos de inestimável valor psico-social e espiritual. Os seus usuários consideram o “vinho das almas” como um instrumento físico-espiritual que favorece a limpeza interior, a introspecção, o autoconhecimento e a meditação.

Utilizar ayahuasca aqui na Amazônia é beber do próprio poço de nossa ancestralidade e da magia que representa a nossa milenar resistência. Aqui na floresta, protegidos pelos entes fortes de nossa religião animista e natural, nossos ancestrais não precisaram “miscigenar” sua fé.

Não foi necessário fazer como os negros escravos que deram nomes de santos católicos aos seus deuses africanos. Nossos ancestrais indígenas não precisaram batizar Iemanjá de Nossa Senhora ou Oxossi de São Sebastião para se protegerem da fé unilateral do dono da terra.

É que entre nós a terra era de todos e o único dono era o senhor da chuva, do orvalho e do sol. A beleza coletiva dos recursos naturais era compartilhada por toda a aldeia, do curumim ao sábio ancião.

A ayahuasca era a essência espiritual dessa convivência material fraterna e universal entre as árvores carinhosas, os riachos irmãos, os pássaros cantores, os peixes, as larvas, os insetos, as flores. A Ayahuasca ancestral era o elo entre a terra e o espírito.

Se não fosse uma erva espiritual e mágica, trazida pelas mãos milenares dos povos indígenas amazônicos, ela não teria resistido ao tempo. Por isso é natural que a ayahuasca atraia cada vez mais o homem branco, esmagado pelo destrutivo modo de vida urbano, elitista, ocidental, capitalista.

A ayahuasca não é um chá que se consome como se bebe um líquido ácido qualquer. O seu uso é espiritual e envolve aqueles que o utilizam na mais límpida tradição de amar o próximo e reencontrar os valores que perdemos na caminhada do planeta que se dividiu em castas, cores, fronteiras e etnias.

Não entrarei no debate acadêmico sobre o uso de substâncias psicoativas por parte das religiões milenares, das eras pré-colombianas aos templos dos tempos atuais. Não tenho competência para debater os pontos de vista da medicina, da psicologia ou da etnofarmacologia. Ficarei apenas com os resultados do uso milenar da ayahuasca pelos povos indígenas.

A milenar história amazônica não registra casos de morte ou de seqüelas à saúde dos povos indígena por terem utilizado a ayahuasca. Nenhum índio deu entrada no hospital dos brancos ou foi curado pelos pajés. Aliás, as mulheres indígenas, ´apesar´ de beberem a ayahuasca, não registram nenhum caso de câncer de mama.

A ayahuasca não é “taliban”, seus usuários não se constituem em nenhuma seita, eles não são fanáticos, não há um único caso de morte ou de castigo físico que tenha sido resultado do seu consumo ritualístico.

O uso ritualístico da ayahuasca não provoca transes místicos ou de possessão. Ela não age no organismo como a antiga bebida hindu, denominada soma, que se divinizou por afastar o sofrimento, embriagando e elevando as forças vitais.

Depois de 4.000 anos de uso sagrado e ritualístico da ayahuasca os estudiosos da civilização ocidental erguem argumentos anêmicos e endêmicos de uma sociedade que tem medo do ´contato´ aberto do homem com a natureza. É que eles têm medo da relação amorosa entre o indivíduo e a natureza com os seus elementos poderosos e coletivos.

Os sábios e avançados incas utilizaram a ayahuasca para consolidar-se como povo, como nação e para ajudar no florescimento da cultura, da matemática, da agricultura e da astronomia. Não é qualquer planta ou cipó que faz um povo, uma história milenar, uma religião.

Só não puderam utilizar a sagrada ayahuasca para produzir metálicos fuzis, pois se assim fosse, não teriam sido dizimados pelos invasores espanhóis. Pizarro não consumiu o “cipó dos mortos”, por isso dizimou tantos guerreiros, mulheres índias, donzelas, pajés, curumins.

A ayahuasca resistiu, venceu os invasores e as suas crenças unilaterais, atravessou os séculos, os milênios, unificou as milenares gerações indígenas e suavizou a dor ´civilizatória´ das eras pós-colombianas.

Quando o Acre propôs, sob a iniciativa da deputada Perpétua Almeida, que o uso ritualístico da ayahuasca fosse considerado patrimônio cultural imaterial é porque ninguém mata uma alma, ninguém prende um sentimento, ninguém aniquila uma vontade, ninguém encarcera uma opinião, ninguém enclausura uma fé.

A ayahuasca é diferente de outras religiões, que nascem de visões, contatos divinos, que têm origem na cosmologia do céu para a terra. A Ayahuasca é a religião da terra para o céu, da matéria eterna e natural para o infinito do sonho humano, a religião natural.

Uma verdadeira e única religião do Brasil, aliás, uma colossal e genuína religião amazônica! Combatê-la é bizarro, síndrome de colonizador!

◙ Moisés Diniz é deputado estadual (PC do B) – Acre.

Fonte: Site da Deputada Perpétua Almeida
http://www.perpetuaalmeida.org.br/site/texto.asp?id=519

Ayahuasca contra depressão

Ayahuasca contra depressão

FOLHA ONLINE – 19/11/2008
USP testa “chá do Santo Daime” contra depressão
fonte: folha.uol

O “chá do Santo Daime”, originário da Amazônia e empregado em rituais religiosos, tornou-se a base de uma pesquisa inédita bem-sucedida da USP (Universidade de São Paulo) de Ribeirão Preto para tratar pacientes com depressão.

O projeto-piloto foi feito com duas mulheres com problemas crônicos de depressão, que tomaram uma dose do chá e relataram melhora imediata. A idéia agora é estender o estudo para 60 pacientes, com dosagens repetidas. Os pesquisadores querem descobrir se a ayahuasca –espécie de chá com efeito alucinógeno feito a partir de um cipó e um arbusto originários da Amazônia– pode substituir os antidepressivos.

Depois de a Universidade Federal de Santa Catarina fazer pesquisas com camundongos, a USP testou o chá nas duas mulheres na faixa dos 50 anos que têm sintomas como perda de apetite, desânimo e choro.

Elas tomaram 200 ml (um copo) da bebida e ficaram em observação por três dias. “No mesmo dia as pacientes já estavam melhores, e no segundo dia diziam que não estavam mais depressivas, que as cores da vida tinham voltado”, disse Jaime Eduardo Hallak, professor do Departamento de Neurociência e Ciências do Comportamento da Faculdade de Medicina da USP.

Após três dias, foi ministrado às pacientes antidepressivo comum, “porque ainda não há evidências do efeito permanente da ayahuasca”. “Mas elas acharam a experiência positiva e disseram que gostariam de tomar mais.” O médico agora aguarda nova autorização do Comitê de Ética do HC de Ribeirão para ministrar o chá a 60 pacientes em doses repetidas e em intervalos pequenos.

Na opinião de Hallak, é possível que o chá amazônico venha a se tornar uma arma contra a depressão. “Eu acredito que é possível formular um medicamento com o chá. Se não diretamente com a estrutura da molécula presente no Santo Daime, algo muito próximo.”

A ayahuasca contém duas substâncias –harmina e dimetiltriptamina. A harmina é uma espécie de antidepressivo, mas o que causa o efeito imediato é a dimetiltriptanima, que gera o equivalente a um banho de serotonina no cérebro.

O segredo do Santo Daime, diz Hallak, está na rapidez: o efeito é mais imediato, por exemplo, do que tomar um comprimido de antidepressivo.

 

O GLOBO / SAÚDE – 16/11/2008
USP de Ribeirão Preto pesquisa uso do chá de Santo Daime contra a depressão
fonte: globo.com

Duas mulheres, com problemas crônicos de depressão e que não respondiam bem ao tratamento convencional, foram as primeiras pacientes voluntárias de um estudo que vai testar a eficácia da ayahuasca – uma poção feita com o cipó Jagube e com a folha do arbusto Rainha, utilizada pelos adeptos do Santo Daime. O estudo que acompanhará, inicialmente, outros seis pacientes, é coordenado pelo professor Jaime Eduardo Cecílio Hallak, do departamento de Neurociências e Ciências do Comportamento, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, segundo reportagem do jornal A Cidade.

– Depois desse estudo com oito voluntários, vamos propor ao comitê de ética a ampliação até 60 pacientes. Os resultados com os dois primeiros casos foram fabulosos – garante Hallak.

O professor conta que as pacientes chegaram tristes, deprimidas, sem iniciativa, desanimadas, sem apetite e com insônia.

– Demos a ayahuasca e elas ficaram em observação no hospital durante três dias, por questão de segurança.

O pesquisador conta que depois de tomarem a ayahuasca, as pacientes tiveram visões semelhantes às relatadas pelos usuários do Santo Daime. E também sensações e pensamentos de bem-estar. Essas visões e sensações duraram de 40 minutos a uma hora. E logo depois veio a boa surpresa.

– Aí fica o que chamo de efeito fabuloso: as pacientes não estavam mais tristes, nem deprimidas. De imediato, as duas senhoras, alegres, disseram que passaram a encarar a vida com novo ânimo.

Para Jaime Hallak, as sensações de alegria e bem-estar delas, que ocorreram rapidamente – equivalem ao resultado normalmente obtido com o eletrochoque – procedimento utilizado quando os demais não funcionam – mas depois de 5 a 6 sessões de aplicação.

– Nesse caso de uma dose única, cujo efeito perdura por quatro a cinco dias, é um dado importante. Como é um teste inicial, não demos as doses subseqüentes e elas voltaram ao tratamento convencional.

“Banho” de serotonina

O pesquisador afirma que a poção ayahuasca contém duas substâncias já conhecidas: uma delas é a dimetiltriptamina e a outra é a harmina.

– A harmina, por si só, já é um antidepressivo potente, mas leva de 15 a 20 dias para funcionar. Então o bem-estar imediato não é provocado por ela, mas pela dimetiltriptamina, que causa essas sensações.

Segundo o pesquisador, a substância “dá um banho” de neurotransmissor no cérebro – que é a serotonina – e o paciente tem aquelas visões e a sensação de bem estar.

– Os antidepressivos disponíveis atualmente aumentam a disponibilidade do neurotransmissor serotonina. Mas a dimetiltriptamina ‘inunda” o cérebro de serotonina e provoca de forma muito mais acentuada o mesmo efeito dos antidepressivos. Depois vem rápido o bem-estar: esse é o grande achado.

O próximo passo é delicado: será preciso começar a ajustar a posologia, determinando a dose que deve ser dada, de modo a evitar muitas visões, mas garantindo a melhoria da depressão e mantendo sempre a sensação de bem-estar.

É preciso controle médico

A ayahuasca não tem contra-indicações, mas não deve ser usada fora do controle hospitalar e médico como antidepressivo. Pode ser contra-indicada se a pessoa já estiver tomando antidepressivos, por causa de efeitos colaterais.

Além disso, a substância harmina é inibidora de uma enzima que temos no organismo a MAO – monoamina oxidase. É a mesma substância encontrada em alguns antidepressivos, que exigem do paciente uma dieta especial. Nesse caso, para consumir a ayahuasca, o paciente precisa fazer uma dieta sem banana, presunto, queijo curado, entre outros alimentos que podem interagir negativamente com a substância.

Santo Daime

Hallak, médico formado na Universidade Federal de Uberaba – mas com carreira de pesquisador feita na USP, com pós-doutorado na Inglaterra, disse que não é praticante do Santo Daime. Mas depois de manter contato com os freqüentadores da igreja de Ribeirão Preto, o Centro Fluente Luz Universal Pedro Nunes Costa, conheceu histórias de pessoas que foram dependentes de álcool e drogas e que abandonaram naturalmente o hábito.

– Dependência de drogas ou álcool está ligada a quadros depressivos. Daí veio a idéia de pesquisar a ayahuasca como antidepressivo, embora já existam estudos com outros grupos mostrando o abandono dessa dependência depois de entrar no Daime – lembra o especialista.

Paralelamente, o grupo de Ribeirão está fazendo parceria com um grupo do sul do país que estuda detalhes do mecanismo de atuação da ayahuasca em animais. Depois do término do estudo-piloto, com oito pacientes – todos voluntários- os resultados serão analisados. Para completar o grupo de 60 voluntários, será preciso localizar pacientes depressivos que não estão sendo beneficiados pelo tratamento atual e querem ajuda.

Alucinógeno

O Santo Daime, enquadrado como alucinógeno, não causa dependência. Mas o consumo é liberado pelo Ministério da Saúde apenas para uso religioso. Já o Ministério da Cultura, ainda na gestão Gilberto Gil, transformou o Santo Daime em patrimônio histórico nacional.

Jaime Cecílio Hallak observou que todas as pessoas que tomam ayahuasca – seja na igreja ou no laboratório – têm as mesmas visões simbólicas ligadas a questões da natureza, com imagens de espíritos e seres da floresta.

– A pessoa não perde a consciência nem o controle e sabe que está tendo as visões.

Doença já é a quarta causa de incapacitação no mundo

Em 2020 a depressão será a segunda causa de incapacitação no mundo, segundo previsão da Organização Mundial da Saúde.

Hoje é a quarta causa – lembra o psiquiatra Silvio Luiz Moraes, chefe da equipe da Enfermaria de Psiquiatria do HC de Ribeirão Preto.

Ele admite que tem ocorrido mais casos da doença e que aumentou o número dos pacientes refratários aos tratamentos convencionais.

Jaime Hallak acredita que os critérios em diagnóstico melhoraram muito. Mas também existem evidências de que está aumentando o número de casos de depressão, por questões psicológicas da sociedade moderna.

E comemora que diminuiu o preconceito.

– Só da gente conversar sobre depressão para um jornal, mostra que as pessoas não têm mais vergonha de falar que vão a um psiquiatra. Hoje até parece que é status: eu vou lá no meu psiquiatra. Um dia estava conversando com um rapaz e ele falou: “tenho meus dois médicos, meu psiquiatra e meu terapeuta”.

Múltiplas causas

As causas das doenças psiquiátricas são consideradas multicausais.

– A pessoa pode ter uma predisposição genética, mas não é suficiente para determinar que a pessoa ou o filho dela terá depressão. Mas aumenta a chance desse filho ter o problema em comparação com o filho de uma pessoa que não tem depressão. Mas só isso não é suficiente para explicar- disse.

Segundo o pesquisador, é preciso a ocorrência de eventos na vida da pessoa “que propiciem essa carga genética de se expressar. E essa expressão dessa carga genética, significa que você tem um desequilíbrio bioquímico”.

Mas não é só ele: por isso, tratar depressão não é só dar remédio, diz o médico. “Acho imprescindível, além do tratamento medicamentoso ou biológico, fazer o acompanhamento psicoterápico.”

Doença crônica

A depressão é uma doença crônica: antigamente se acreditava que ocorreriam apenas episódios.

– Hoje em dia, pode ter gente que não concorda com essa visão, acredito que a depressão é recorrente. Quem teve um episódio, tem chance grande de ter um segundo episódio. Quem teve um segundo, quase certamente terá um terceiro; quem teve um terceiro, certamente terá um quarto episódio; cada episódio aumenta o risco: isso é biológico, não é psicológico. Por isso também não posso tratar depressão só com psicoterapia. Tem que tomar as medicações e fazer os tratamentos biológicos, afirmou o pesquisador Jaime Cecílio Hallak.

Ayahuasca como opção espiritual

Ayahuasca como opção espiritual

por: Dr. Régis Alain Barbier

As plantas sagradas, como um remédio, podem nos auxiliar a conscientizar um senso ampliado de identidade, provendo o estímulo necessário para a superação do hábito de restringir a nossa consciência de “eu” ao mundo das abstrações ou ao dos desejos egóico e pueris.

Com certeza, uma poção com a Ayahuasca, (assim como a seiva de outras plantas tradicionais e de uso ritualista), é capaz de proporcionar o auxílio que precisamos para redirecionar o nosso destino; orientar a humanidade em direção à realização do homo-sapiens verdadeiro: um ser ponderado, compreensivo, compassivo, tolerante, flexível e integrado.

O caminho dos vegetalistas, ou ayahuasqueiros, por ser mais intenso que muitas outras disciplinas, pode parecer de alguma maneira mais fácil por proporcionar um contato mais precoce e mais intenso com o numinoso. Tal contato pode inspirar compromisso e abrir as portas para mais força e criatividade, mais graça, para superar os conteúdos incômodos.

Certamente, com um investimento enorme de tempo e esforço, estas mesmas expe-riências podem ser obtidas pelos que dominam a ciência da meditação. Para investigadores cuja prática espiritual deve ser integrada com a necessidade de trabalhar e prover ao seu sustento, o uso adequado dessa tecnologia milenar pode tornar o pro-cesso da realização exeqüível. Para os que, mergulhados nessa nossa “sociedade de competitividade e consumo”, encontram o tempo para meditar essas experiências poderão vir a representar um salto qualitativo nas suas práticas.

Porém, a Ayahuasca não é um caminho para todos; substâncias psicoativas não são pontes, ou atalhos, apenas vias mais rápidas. A escolha deve ser baseada no conhecimento amplo dos fatores envolvidos. Esclarecer-se requer a resolução de materiais e conflitos inconscientes; aqueles que aspiram a essa realização precisam avaliar a sua disposição e coragem, decidir o compasso e a intensidade com a qual desejam se encontrar com essa psicodinâmica, essa “purgação” ou purificação na linguagem dos adeptos da Ayahuasca.

A Ayahuasca revela que o conhecimento que temos do mundo, da existência, é um estado ou processo psicossomático. A experiência mística realiza a descrição cientifica da relação ecológica de todos os seres, do campo quântico e unificado; essa experiência implica desapego e transformação, isto é a drenagem do conceito de “ego”.

Se a nossa intenção é sincera, se temos coragem e generosidade o suficiente, então vale a pena estudar todas as técnicas úteis para a realização espiritual – a Ayahuasca, utilizada com motivação certa, habilidade e integridade, pode contribuir muito para o alívio do sofrimento, dando acesso à sabedoria e visão necessária para a união mística.

AYAHUASCA COMO INSTRUMENTO DE AUTO-OBSERVAÇÃO:

A percepção, habitualmente embotada, permite apenas aprender e acessar uma fração distorcida de realidade; uma realidade revestida de projeções pessoais e pressuposições. A propriedade central dos “enteógenos” ou “psico-integradores” é com certeza levantar o véu, amplificando a experiência.

A Ayahuasca amplifica a capacidade psicossomática de responder a gradações mais sutis de estímulos além de muitas vezes integrar as diversas faculdades sensoriais em processos sinestésicos. Esse efeito de aumentar a capacidade de experienciar, de avaliar e apreciar por si mesmo, é central para a compreensão do seu significado.

Esta amplificação, como uma lupa, permite uma (re)visitação intensiva e absorta dos conteúdos mentais – recordações, idéias, fantasias, pensamentos, emoções, medos, esperanças, sensações em gerais. Na dependência da ética e valores morais atuais do indivíduo, além de influir na intensidade e no foco das percepções, a experiência pode motivar a re-significação dos conteúdos sendo observados. Valores morais e atitudes são revistas.

Aqui temos uma tecnologia que alterando a composição bioquímica do instrumento e dos meios de processamento da informação, permite a inativação temporária dos filtros culturais e psicodinâmicos que nos bastidores da mente agem determinando, formatando e hierarquizando, nossas experiências quotidianas.

Pode se de fato aprender muito, crescer e liberar energia psíquica revendo, transformando, eliminando, aceitando e se reconciliando com conteúdos incômodos.

COMO CAMINHO INICIÁTICO: SINCERIDADE E CORAGEM:

A função de uma substância com a Ayahuasca é muitas vezes mal entendida. Muitos pensam que pelo fato de terem tido experiências maravilhosas, já obtiveram as respostas e foram de alguma maneira transformados. Em alguns aspectos foram, mas muitos descobrem a realidade de que existem muitas camadas de condicionamento e ignorância a separar a mente superficial do núcleo do ser.

A Ayahuasca e outras plantas instrutoras podem levar à transposição dessas barreiras permitindo o acesso à nossa essência, necessitando, contudo persistência e comprometimento no sentido de mudar e remover os velhos hábitos que tendem a reaparecer.

Muitos imaginam que a repetição da experiência irá manter um estado de lucidez e visão, de fato pode, mas freqüentemente, a mudança requer trabalho duro e esforço dedicado; algumas vezes a experiência transforma, outras vezes mostra o possível, aponta o caminho, a responsabilidade de implementar as mudanças nos pertence.

Para o investigador espiritual sério, assim como para os que buscam conhecimento verdadeiro, a característica mais importante é a honestidade. Isto significa a coragem para olhar para o que se apresenta no processo, pela habilidade de admitir as suas falhas quando se tornam aparentes e pela determinação de mudar os seus comportamentos em função do que se revela.

O contéudo e natureza das experiências que essa substância induz não são, portanto, produtos artificiais resultantes da sua interação farmacológica com o cérebro, mas expressões autênticas da psique que revela seu funcionamento e potenciais em níveis inacessíveis no estado ordinário de consciência.

Para aquele cuja intenção real é instalar uma transformação psico-espiritual, a Ayahuasca pode funcionar como catalisador natural a revelar e liberar intuições e conhecimentos oriundos das facetas mais elevadas do ser, permitindo o acesso a uma sabedoria fundamental relativa ao universo e à nossa posição como indivíduo.

O grande valor da Ayahuasca, trazidos à nossa atenção pelas sociedades indígenas, é que ela dissolve os limites da mente inconsciente; ela dá acessos aos conteúdos reprimidos e esquecidos. Ela possibilita o reconhecimento das configurações universais da psique, os arquétipos de humanidade, junto com um leque mais abrangente de conhecimentos e maneiras de conscientizar, até eventualmente a vivência dos diversos aspectos da união mística.

COMO CAMINHO INICIÁTICO: TOLERÂNCIA:

Uma substância como a Ayahuasca oferece opções terapêuticas já que tende a dissolver a fragmentação e a compartimentagem interna, a revelar mecanismos de defesas diversos como “projeção”, “negação” ou “deslocamento”, possibilitando o esclarecimento dos sectarismos e pontos de vistos intransigentes.

Na medida em que o indivíduo consegue ver as coisas de uma maneira não distorcida, vendo claramente não apenas o seu passado mais também a presunção e cegueira da sua própria cultura e grupos de referencias, ele necessita, além de tolerar a decepção e o sofrimento, superar sentimentos de desamparo.

Nem sempre é fácil ter de ver e aceitar que não somos assim tão vítimas, mas sim responsáveis pelas nossas vidas; aceitar ser capaz, reconhecer o seu potencial e a responsabilidade que isso requer implica coragem e determinação. Podemos até recusar crer que fazemos jus a muita beleza e alegria, bem estar profundo, sem nada ter de pagar além de ser o que já se é; apenas sendo o que já somos. O gerenciamento emocional produtivo dessa reavaliação, a reorganização psíquica, implica um grau suficiente de equilíbrio e bom senso para que se tomam atitudes judiciosas sem precipitações.

TRIANGULAÇÃO – AYAHUASCA COMO UM FENÔMENO TRÍPLICE:

A PESSOA, O AMBIENTE E O CHÁ.

Sobre a influência da Ayahuasca, a intensidade dos estímulos – tanto por amplificação e enriquecimento de detalhes e pontos de vistas perceptuais quanto pelo maior influxos de dados perceptivos – aumenta consideravelmente as possibilidades de respostas à experiência. Devido a essa magnificação da percepção, uma atenção especial tem se dado à qualidade dos estímulos provenientes tanto do indivíduo quanto do meio onde o chá esta sendo utilizado.

A hipótese denominada em inglês de “set and setting” foi inicialmente formulada por Timothy Leary nos anos 60 no âmbito das pesquisas iniciais com agentes psicoativos e foi rapidamente aceita pelos demais pesquisadores da área. A teoria geral determina que o conteúdo de uma experiência com substância psicoativa é uma resultante da interação de três fatores básicos.

Os fatores essenciais são: o “set”, que traduzo como sendo o “fator pessoal”, isto é aquele que o individuo traz consigo, os seus conteúdos (intenção, atitudes, personalidade, humor, etc.); o “setting” ou “fator ambiental” corresponde a todos os elementos externos ativos e capazes de influir a experiência (fatores interpessoais, social, ambiental, o âmbito). A substancia em si, o “Chá” age como um gatilho, ou catalisador, a conectar e por em interação os fatores citados numa dinâmica especifica, criativa e intensa.

É evidentemente impossível definir qual dos fatores é o mais importante tanto quanto é impossível dizer qual o lado mais essencial de um triângulo isóscele. Contudo “o âmbito” é a vertente da experiência que pode ser programada, estudada, ensaiada e cuidadosamente preparada para um melhor proveito.

TRIANGULAÇÃO – O FATOR PESSOAL:

Como a Ayahuasca revela o nosso lado oculto, abrindo as portas do inconsciente numa linguagem psicológica, um enorme leque de opções e qualidade de experiência se apresenta. Na realidade essa poção psicoativa revela e liberta o que está dentro da pessoa, tornando a mente manifesta (ou seja, efeito “psicodélico” como “manifestação da mente”). A mente se torna sujeita a observação e, por isso mesmo, a transformação.

A fluidez e a qualidade do deslocamento do ayahuasqueiro nesse labirinto psíquico depende antes do tudo do fator pessoal, do “conteúdo” que inclui os elementos do inconsciente pessoal, o registro da experiência de vida, assim como os mecanismos condicionantes em operação – recatos e defesas – a determinar a liberdade de opções, a qualidade, riqueza e legitimidade das interpretações, enfim, os principais desafios do indivíduo.

Outro aspecto importante do conteúdo consiste nos valores e critérios pessoais; atitudes, aspirações, expectação, intenção e ética. Estes elementos irão influenciar a atração da atenção e determinarão o modo da pessoa lidar com o material psíquico revelado.

TRIANGULAÇÃO – O FATOR AMBIENTAL:

O fator ambiental se refere aos fatores externos ao indivíduo e capazes de influenciar a experiência: o lugar onde o chá é servido; a atmosfera do ponto de vista cultural, espiritual e emocional; como o indivíduo está sendo atendido; a quantidade de pessoas envolvidas; o tipo de liderança aplicada na experiência são alguns dos fatores a considerar.

Normalmente o indivíduo se torna bastante impressionável quando sofre os efeitos de substâncias como a Ayahuasca, estado decorrente da magnificação perceptual já mencionada. Esse efeito acoplado como o aumento da perspicácia, capacidade metafórica e habilidade em gerar psico-associações criativas, alimenta o lado noético e o imaginário da experiência.

É obvio que essa “impressionabilidade” não significa que o ayahuasqueiro é mais facilmente suscetível de influência do que o homem comum ou do que os fiéis das religiões de massas, por exemplo. O grau de credulidade, ingenuidade, ou então de cepticismo (ver nota) de um indivíduo reflete opções cognitivas, filosóficas, assim como traços de personalidade profundos e estáveis, até mesmo inerentes, que não serão transbordados pela “força e influência” do chá. Ao contrário, são justamente esses conteúdos profundos do indivíduo – inclusive tendências básicas como credulidade ou cepticismo – que determinam a maneira de significar a experiência.

O tipo e da qualidade do sistema de crenças, da visão, pertinente ao âmbito social no qual a experiência irá ocorrer assim como o tipo de liderança e dinâmica dos trabalhos são fatores essenciais, capazes de influenciar em grande parte a harmonia e tranqüilidade da experiência; possuir uma boa descrição do âmbito onde se irá comungar a poção é um fator importante. Uma liderança não muito interventiva e tranqüila favorece o acesso e estudo dos conteúdos pessoais, o exame e integração da sua própria trajetória, o encontro de caminhos e conceitos próprios.

Um facilitador precisa ser paciente, empático, familiarizado com os processos da experiência; ele pode ser muito efetivo sabendo refletir os pontos essenciais, fazer perguntas, observações aparentemente casuais. Cantos, músicas, atitudes e até mesmo orientações diretas bem dosadas, podem ser importante para facilitar uma experiência suave e rica.

O ayahuasqueiro descobrirá que dividindo possíveis dificuldades com companheiros receptivos e compreensivos poderá gerar claridade e conforto. Finalmente, e na maioria das vezes, o melhor guia é a nossa própria consciência e esse processo interno não deve ser interferido a não ser quando solicitado.

Rituais inspiradores, universais e holísticos, ambientes naturais, atividades espontâneas e criativas, permitem a focalização da atenção para regiões psíquicas interessantes.

Os próprios conteúdos, junto com a configuração de ambiente, a qualidade do chá, a própria intenção e a do grupo, configuram um processo singular, uma “gestalt”, um “ser maior”, o próprio eu transpessoal da experiência. Reconhecer e ter certeza de estar em sintonia e harmonia com esse “ser maior” gerado pelo evento é a chave de uma experiência de grupo bem sucedida.

(Nota) Cepticismo: atitude ou doutrina segundo a qual o homem não pode chegar a qualquer conhecimento indubitável, quer nos domínios das verdades de ordem geral, quer no de algum determinado domínio do conhecimento.

TRIANGULAÇÃO – O CHÁ:

Investigações demonstram a variabilidade do chá na sua composição química. Fatores dependentes, das plantas e lugar de origem, da hora da colheita, do preparo (quantidade relativa das duas plantas, grau do apuro e tipo de água utilizada – fatores com pH, teor mineral da água) todos influenciam a qualidade do chá e, portanto os seus efeitos. A quantidade utilizada durante uma cerimônia é também um fator decisivo.

Quantidades habituais ou moderadas permitem uma observação melhor dos seus próprios conteúdos, um estudo detalhado da sua própria psicodinâmica. Quantidades maiores são necessárias para se “viajar no astral” na linguagem dos usuários de algumas seitas. A utilização de grandes quantidades de chá, acima de 300 mililitros, numa única tomada é mais bem aproveitada em ambiente especifico, mais reservados com uma supervisão adequada e favorece o tipo de vivência descritas na fenomenologia como “experiências místicas”.

Com uma prática adequada e um considerável trabalho sobre si mesmo é possível se chegar aos mesmos resultados com dosagens menores.

INTEGRAÇÃO DA EXPERIÊNCIA – REAÇÕES:

Como as defesas do ego são desafiadas, sentimentos reprimidos e recordações afloram na consciência, podendo criar algum nível de ansiedade – uma reação semelhante ao enfrentado em situações inusitadas ou de desfecho incerto como praticar esportes radicais, participar de competições esportivas ou ainda se submeter a alguma prova. Uma experiência desse tipo é geralmente muito proveitosa por ensinar mais.

Reações adversas mais sérias ainda não foram descritas com o uso da Ayahuasca, em parte porque o chá tem sido utilizado com critério e responsabilidade, em doses adequadas, e que a Ayahuasca não tem sido promovido como sendo remédio e solução para curar as crises emocionais de pessoas seriamente transtornadas.

Triagens para eliminar os prováveis candidatos a reações adversas, como as personalidades esquizóides e pre-psicóticas, os neuróticos com instabilidade de identidade e níveis altos de ansiedades, os usuários de drogas e medicamentos psico-ativos possibilitam a realização de Cerimônias tranqüilas, seguras, criativas e de inestimável valor espirituais.

INTEGRAÇÃO DA EXPERIÊNCIA – EFEITOS PRÁTICOS:

Experiências como as proporcionadas pela Ayahuasca são por natureza transcendental, transpessoais, porque alargam a experiência e visão da realidade, diminuem o império do ego sobre a personalidade, facilitam uma mudança de valores.

Torna-se evidente que a utilização de uma substância como a Ayahuasca é mais útil dentro de um contexto e de uma disciplina tendo como objetivo o crescimento e a evo-lução espiritual, um programa chamando atenção para os valores éticos e morais fundamentais. Uma disciplina adequada fornece um corpo de ética capaz de apoiar as mudanças requeridas, clarificando os objetivos, mantém a mente focada e aberta para o aprofundamento crescente da experiência.

É o indivíduo, a sua intenção que determinam se a experiência será mística e religiosa, evolutiva ou não. Bastante preparo é necessário para se chegar a uma experiência mística, mesmo usando Ayahuasca e um trabalho de integração efetivo é necessário para que a experiência seja de fato transformadora. Se o estado de consciência ampliado induzido pela experiência conduz ou não a mudanças positivas e duradouras, depende da intenção e dedicação do usuário.

Uma visão, mesmo rápida, de uma realidade maior pode mudar a vida de uma pessoa se ela resolve integrar essa visão à sua realidade.

Receber uma luz não é igual a aplicar essa luz no dia a dia; não há conexão inerente entre uma experiência mística de unidade e a expressão ou manifestação daquela unidade na vida cotidiana. Este ponto é talvez óbvio, contudo freqüentemente esquecido por aqueles que debatem se, em princípio, um agente psicoativo pode ou não ter valor no âmbito da busca espiritual. Qualquer que seja a fonte ou a origem da iluminação, as revelações só poderão ter efeitos práticos com a permissão e dedicação do individuo.

Autor: Dr. Régis Alain Barbier – médico, filósofo, presidente da Sociedade Panteísta Ayahuasca e iniciador do Movimento Filosófico Essencialista.

Ayahuasca, DMT e Neurociências

Ayahuasca, DMT e Neurociências

por: Marcelo Bolshaw Gomes [1]

JUSTIFICATIVA

O N,N-DMT ou N,N-dimethyltryptamine (C12H16N2), o alcalóide psicoativo existente na “bebidas mágicas brasileiras” (Ayahuasca e Jurema), deve se tornar no principal antidepressivo deste século, indicado para processos terapêuticos de mudança de hábitos, principalmente em tratamentos de dependência química, podendo ainda ser utilizado para o estudo da mente e para o desenvolvimento humano. E, apesar desta substância, só existir em plantas no Brasil e de sua patente científica ser discutido no âmbito internacional, ainda são poucas as pesquisas interdisciplinares realizadas sobre o assunto.

Sobre a Ayahuasca, há uma farta literatura botânica e antropológica, alguns estudos específicos sobre sua farmacologia e uma compilação interdisciplinar recente (LABATE & ARAÚJO; 2002) – que detalhamos adiante. Importante agora é ressaltar a descoberta do “efeito ayahuasca” (HOLMSTEDT-LINDGREN, 1967), isto é, de que a psicoatividade oral do DMT depende da inibição da monoanima-oxidase (a enzina catabólica MAO), causada pela ingestão simultânea de beta-carbonilas. Na Ayahuasca, o princípio simbólico feminino é constituído pela folha da Psichotria Viridis (Chacrona ou Rainha), portadora de DMT; e o princípio masculino, pelo cipó Banisteriopsis Caapi (Jagube ou Mariri), que contém harmina e harmalina, inibidores que geram a psicoatividade. Porém, nem a folha nem o cipó são psicoativos tomados separadamente.

Sobre a Jurema, o estudo contemporâneo mais importante é harmahuasca, anahuasca e jurema preta: farmacologia humana de DMT oral mais harmine de Jonathan Ott (2002), em que se investiga a hipótese de sinergia psicoativa entre o DMT e as b-carbonilas em diferentes preparos: a pharmahuasca (cápsulas de DMT e Harmine sintéticos); a anahuasca (bebidas preparadas com plantas diferentes da Ayahuasca, mas com os mesmos princípios ativos); e, finalmente, a Jurema preta, que apresenta um nível de concentração de DMT muito superior ao de outras plantas e é principal fonte contemporânea de triptaminas para as pharmahuascas e anahuascas. Outra descoberta notável, é que, consumido via oral acima de 25 mg, o DMT é psicoativo por si só, não precisando de inibidores. Não haveria, portanto, o tão propalado “ingrediente perdido” do preparo da Jurema entre os índios nordestinos.

Sobre o DMT propriamente dito, as pesquisas se iniciam com os textos de Terence McKenna (1992, 1993, 1994 e 1996). Hoje, na internet, encontram-se alguns sites com informação detalhada sobre a substância ([2]).

Toda informação disponível referente a estes três pontos (a Ayahuasca, a Jurema e o DMT) será detalhada em diferentes revisões bibliográficas.

OBJETIVOS E METODOLOGIA

Além de investigar o efeito do DMT no cérebro, o objetivo principal desta pesquisa é, observando o aspecto reverso, estudar a mente através do DMT. Ou seja: não apenas estudar o efeito químico da substância no organismo, mas, sobretudo, compreender quais dimensões de consciência que este efeito propicia (telepatia, regressões mentais a traumas infantis, visualização de imagens do inconsciente profundo, mudanças na percepção do tempo e da realidade).

Todavia, há também objetivos secundários bastantes relevantes. Em primeiro lugar, trata-se da importância de se estabelecer um projeto de pesquisa trans-disciplinar de ponta envolvendo pesquisadores locais (psicólogos, antropólogos, médicos, etc) com um assunto regional (uma vez que a jurema é nativa do semi-árido nordestino) dentro do Centro Internacional de Neurociências. Pensamos que a UFRN não deve apenas sediar este instituto de pesquisa, mas também participar desta iniciativa com seus pesquisadores, com temas de interesse público da sociedade potiguar. Mas não é só: o projeto quer também objetiva a elaboração e produção artesanal de um medicamento a base de DMT extraído da Jurema, bem como a possibilidade de sua utilização no tratamento de dependentes químicos. Para tanto, várias outras pesquisas específicas precisam ser desenvolvidas, ampliando assim o campo da investigação. Trata-se assim de um projeto geral a partir do qual outros projetos podem ser desenvolvidos.

A idéia é entrecruzar diferentes metodologias para investigar o DMT: estatísticas de entrevistas qualitativas, hipnose, encefalogramas, tomografias cerebrais, simulações holográficas, experiências com símios e outros animais e até dissecação do cérebro de doadores. Também é preciso colocar que cada sub-pesquisa do macro-projeto comporta uma metodologia específica aos seus objetivos particulares. Por exemplo: extrair DMT da Jurema e sintetiza-lo com b-carnboninas em um medicamento? Ou ainda se a potencialização homeopática do DMT+harmine aumenta a eficácia do medicamento em pequenas dosagens de longo prazo? Essas são investigações que comportariam metodologias e técnicas de pesquisas específicas.

O essencial, no entanto, será demonstrado através do método lógico dedutivo, com ficará claro com a enunciação da hipótese da pesquisa, após as revisões bibliográficas necessárias para colocação do assunto no patamar atual.

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA I – A AYAHUASCA

A bebida conhecida como Ayahuasca ou Yajé é preparada através da infusão do cipó do Jagube ou Mariri (Banisteriopsis caapi) e da folha da Rainha ou Chacrona (Psycotria viridis) – naturais da região. A bebida teria origem do Império Inca e seu uso teria se difundido entre várias tribos indígenas, das quais se tem razoável conhecimento antropológico. Ingerindo o chá, os índios absorvem o espírito da planta e, em transe, têm experiências psíquicas e vivenciam fenômenos paranormais, tais como a telepatia, a regressão a vidas passadas, contatos com os espíritos dos seus antepassados mortos, presciência e visão à distância. Há relatos de xamãs usavam a bebida para descobrir qual era a doença de seus pacientes e saber como tratá-la. Diversos antropólogos, inclusive, tomaram o chá e descreveram seus efeitos parapsíquicos. Ainda hoje, várias tribos praticam rituais com o uso da Ayahuasca no Brasil, como as dos Kampas e dos Kaxinawás, localizadas perto da fronteira com o Peru. Desde o início do século, nos contatos culturais entre seringueiros e índios, a Ayahuasca passou a ser usada pelos migrantes nordestinos, que colonizaram a Amazônia ocidental. Destes contatos surgiram diversos grupos que associaram o uso da bebida a um contexto religioso cristão-espírita, dos quais a União do Vegetal, no estado de Rondônia, o Santo Daime e a Barquinha, no Acre, são os maiores expoentes.

Paralelamente ao crescimento desses grupos e à expansão do uso religioso do Ayahuasca, uma forte resistência dos setores conservadores da sociedade brasileira se formou, pressionando o governo para embargar o funcionamento destas instituições nos grandes centros metropolitanos. Porém, no dia dois de junho de l992, o conselho decidiu liberar definitivamente a utilização do chá para fins religiosos em todo o território nacional. Segundo a então presidente do Conselho Federal de Entorpecentes (Confen), Ester Kosovsky, “a investigação, desenvolvida desde l985, baseou-se numa abordagem interdisciplinar, levando em conta o lado antropológico, sociológico, cultural e psicológico, além de análises fitoquímicas”. O relator do processo de investigação, Domingos Carneiro de Sá, explicou que o fato fundamental para a liberação da bebida foi o comportamento dos ayahuasqueiros e a seriedade dos centros que utilizam o chá em seus rituais: “Não foram observadas atitudes anti-sociais dos participantes dos cultos, ao contrário, podemos constatar os efeitos integrados e reestruturantes do Ayahuasca com indivíduos que antes de participarem dos rituais apresentavam desajustes sociais ou psicológicos”.

Contra-indicações e efeitos colaterais

Geralmente se observa uma dieta estrita antes as sessões de ayahuasca: comida sem sal, açúcar, óleo, gorduras e condimentos picantes; e principalmente nenhum álcool ou sexo antes, durante ou nos dias imediatamente após a ingestão, em um marco de repouso, silêncio e isolamento do mundo cotidiano. Está comprovado que a dieta influencia diretamente na qualidade da experiência e, sem dúvida, o maior perigo físico ao ingerir ayahuasca está relacionado com os efeitos da harmala, harmalina e tetrahidroharmina que contém, os que cumprem uma importante função inibidora da enzima monoamina oxidasa (MAO).

A tiramina é um aminoácido que normalmente é metabolizado pela MAO no intestino. Logo de levar compostos inibidores da MAO, a tiramina que se encontra em certos alimentos já não pode ser metabolizada pelo organismo enquanto a MAO se encontre inibida. Isto pode causar um acréscimo dos níveis de tiramina na sangre. Feito que os altos níveis de tiramina podem afectar a produção natural de noradrenalina, esta condição pode conduzir a uma crise hipertensiva. Numa crise hipertensiva a pressão sanguínea pode sobressair 180 e o batido cardíaco pode chegar a mais de 100 pulsos por minuto. Quem sofre de uma crise hipertensiva geralmente reporta uma terrível enxaqueca, e pode se complicar chegando a produzir hemorragias, infartos, problemas neurológicos entre outros.

A tiramina se encontra em queijos, vinhos e geralmente em tudo fermentado. Também as drogas simpatomiméticas (MDMA, benzedrina, etc.) podem causar uma crise hipertensiva, além disso de certas ervas naturais a dar reações alérgicas. Os alimentos com alto teor de tiramina que devem ser evitados nos dias prévios e posteriores de cada sessão: queijos fermentados, molhos picantes, feijões, soja, caviar e sucedâneos, chocolate, enlatados, levedura, fígados, figos secos, pescado seco e encharque, banana, café, cerveja, vinho rosado e tinto, carnes em geral. Há também alimentos com moderado teor de tiramina a serem limitados: frutas (a maioria), produtos lácteos (leite, manteiga, yogurte, queijo fresco, etc.), chá, gasosos, vinhos brancos, missó e amendoim.

Um problema mais sério é a possibilidade de interação com outras drogas como o álcool. Uma das interações mais perigosas com inibidores da MAO é a modificação de inibidores seletivos de serotonina (SSRIs). Isto pode desencadear uma síndrome serotoninérgica, parecida com a crise hipertensiva em quanto aos sintomas de elevação da pressão, mas com certas diferenças. Sintomas como agonia aguda na ponta-cabeça, sangramento pelo nariz, rigidez muscular e febre podem indicar o aparecimento de uma crise hipertensiva, de uma síndrome serotoninérgico ou de ambas.

Incidentalmente, não só antidepresivos como os tricíclicos, heterocíclicos, SSRIs e outros antidepresivos atípicos podem causar interacciones perigosas com os começos ativos da ayahuasca, senão também muitas outras drogas, como os descongestionantes nasais, pílulas de emagrecimento, efedrinas, remédios contra a alergia e opiáceos. Também os medicamentos contra a enxaqueca, como o sumatriptan (Imitrex), são maliciosos à inibição da MAO. Ante a aparição inconfundível dos sintomas hipertensivos é recomendável uma cápsula sublingual de nifedipina 10 mg. cada 8 horas, ou se não tabletes de 25 mg. de clorpromazina (narcótico adrenolítica). Ambas podem abaixar a pressão, em caso de urgência.

Em relação aos aspectos antropológicos do Ayahuasca (tradição indígena, grupos religiosos atuais, farmacologia e comportamento psicológico, na Internet, é possível levantar bastante informação sobre o assunto[3]. Mas, o trabalho científico mais importante publicado sobre o tema certamente é O Uso Ritual da Ayahuasca, (LABATE, B. C. & ARAÚJO W. S. (Orgs); 2002). Neste trabalho, além de trabalhos sobre as tradições indígenas e os principais grupos ayahuasqueiros brasileiros (Santo Daime, União do Vegetal e a Barquinha), encontram-se três estudos médicos coordenados pelo Dr. Glacus Brito, em que se relata os resultados da investigação realizadas em 1993 por um grupo de pesquisadores biomédicos brasileiros, norte-americanos e finlandeses para avaliar os efeitos bioquímicos e psicológicos do ayahuasca.

Porém, o texto mais interessante desta compilação é o trabalho do psicólogo cognitivo israelense Benny Shanon, em que se investiga não apenas os aspectos antropológicos e botânicos do ayahuasca, mas também e sobretudo, no sentido reverso, se pesquisa da mente através da experiência do DMT. Pesquisa essa que queremos retomar no âmbito da neurociência.

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA II – A JUREMA

Não é difícil entender porque a Jurema seria sagrada para os índios nordestinos antes da chegada dos brancos. Além de seu caráter alucinógeno e do seu comprovado uso nas guerras e ritos de passagem, a Jurema, enquanto planta, desempenha um papel central no ecossistema semi-árido das caatingas nordestinas: durante os longos períodos de estiagem, quando a paisagem do sertão fica cinza e vermelho, apenas ela e o cacto do mandacaru resistem verdes e com reservas de água. Na verdade, no auge da estiagem, a casca da Jurema seca enquanto seu interior permanece viçoso. Quando a chuva volta, a casca seca cai e a árvore reaparece jovem. Esse fenômeno dá margem a uma longa mitologia de lendas e cantos envolvendo os ciclos de sazonalidade e morte/renascimento. Mas, ao contrário do mandacaru, do qual o sertanejo pode extrair água durante a estiagem, a água da Jurema é completamente inacessível ao uso humano. No caso da Jurema, a existência de água atrai a presença de pequenos insetos e de vários níveis de pequenos predadores da cadeia alimentar do ecossistema do sertão. As cobras são habituais no juremal, tanto pela existência farta de seu alimento como pela proteção dos galhos espinhosos, impossibilitando o trânsito de animais maiores. Este fato deu margem a uma extensa mitologia popular, cantada em pontos e chamadas tradicionais, em que as cobras protegem espiritualmente à árvore, assim como esta, com seus espinhos, protege os seus répteis guardiões. Assim, centro da resistência da vida orgânica à seca, em torno do qual todo ecossistema ‘não-humano’ (na verdade, não-mamífero) da caatinga gravita, a Jurema reina no sertão nordestino, desde tempos imemoriais, às margens de qualquer socialização: trata-se apenas um local perigoso e cheio de tabus, sob múltiplos aspectos.

O próprio termo comporta denotações múltiplas, que são associadas em um simbolismo complexo (MOTA & BARROS, 1990:171). Além do sentido botânico[4], a palavra Jurema designa ainda pelos menos três outros significados: preparado líquido à base de elementos do vegetal, de uso medicinal ou místico, externo e interno, como a bebida sagrada, “vinho da Jurema”; cerimônia mágico-religiosa, liderada por pajés, xamãs, curandeiros, rezadeiras, pais de santo, mestras ou mestres juremeiros que preparam e bebem este “vinho” e/ou dão a beber a iniciados ou a clientes; e a Jurema como sendo uma entidade espiritual, uma “cabocla”, ou divindade evocada tanto por indígenas, como pelos herdeiros de cultos afro-brasileiros, o Catimbó e a Umbanda.

Antes dos colonizadores apenas os índios do sertão do Rio Grande do Norte, os Kariris e os Jê (ou Tapuios), tomavam Jurema. (SANGIRARDI JR; 1983) Essas tribos, detentoras dos ritos da Jurema, no entanto, se aliaram aos holandeses e foram completamente destruídas pelas forças portuguesas. A Jurema como identidade étnica foi então construída historicamente em segredo durante o período de colonização, chegando até tribos litorâneas distantes que não tinham tradição com a bebida. O uso da Jurema foi tolerado e aceito pelos portugueses católicos quando era canalizado para lógica de guerra contra invasores franceses e holandeses, enquanto seu uso religioso era condenado como feitiçaria. Há vários registros históricos (século XVI e XVII) sobre a eficácia militar dos guerreiros-juremeiros. Esta dupla permissão/condenação favoreceu uma expansão secreta e silenciosa da Jurema, levando o uso da bebida a ser conhecida até o Maranhão. (ANDRADE, 1992:9)

Numa primeira fase da colonização, a resistência dos povos indígenas no Nordeste, não permitiu que a Jurema, enquanto árvore sagrada, fosse conhecida, em seus usos e significados, não sendo assim documentada pelos colonizadores e estrangeiros. Numa segunda fase histórica a Jurema representa um elemento ritual ligado à própria resistência armada dos povos indígenas ou à guerra empreendida contra inimigos inclusive em suas alianças. Ainda nesta fase na qual a Jurema começa a ser documentada, seu significado ainda não é entendido mas seu uso já é motivo de repressão, prisão e morte de índios, (…). Na medida em que avança o rolo compressor da colonização, processo de genocídio ou tentativa de dominação, não só política e econômica como também cultural, aparece uma nova forma de resistência: a Jurema assume um lugar central na religiosidade popular, não só indígena regional – Catimbó. Diante do componente negro a Jurema garante seu reconhecimento, como entidade (espírito, divindade, cabocla) autóctone, “dona da terra”. A Jurema é absorvida pelos cultos afro-brasileiros, tendo surgido inclusive os “Candomblés de Caboclos”. Nas últimas décadas é no contexto da Umbanda, religião nascente e em pleno processo de sistematização e de expansão nacional, que a Jurema é integrada na cosmologia sagrada, no panteão da religião nacional. Constatamos em vários estados nordestinos as “Linhas da Jurema”, dentre as linhagens e filiações religiosas da Umbanda. Nesses últimos anos, e paralelo ao movimento religioso propriamente brasileiro, a Jurema continua como “núcleo duro”, segredo, bandeira ou símbolo, para os remanescentes indígenas, em pleno “movimento étnico”, num contexto de defesa de seus direitos humanos, de suas áreas de reservas e de sua autonomia e reconhecimento no pluralismo da sociedade e das culturas brasileiras. (ANDRADE, 1992:2)

E foi assim, neste contexto contraditório, que a Jurema se firmou como prática étnica indígena e se misturou com os cultos africanos. E não se trata, nesses cultos, de reduzir a planta a um ‘espírito’ de uma cabocla como conhecemos na umbanda: o candomblé africano reconhece a Jurema como orixá, o único genuinamente brasileiro.[5] A Jurema chegou ao império como uma forma religiosa de resistência cultural bastante complexa, mantendo viva seu caráter guerreiro e marginal e conheceu ainda um novo ciclo de religiosidade popular – o dos mestres da jurema no catimbó nordestino, que, até a primeira metade do século XX utilizavam a bebida para desfazer feitiços e encantamentos no CE, PB e RN (CASCUDO, 1978).

Porém, apesar de se constituir como um complexo rico em variações, a maioria dos estudos antropológicos sobre a Jurema descreve apenas o Toré, festa dos índios nordestinos em que a bebida é ritualmente consumida. O relato mais antigo data de 1946, quando Oswaldo Gonçalves de Lima descreve o contínuo uso xamânico do vinho da jurema entre os índios Pankararu do Brejo dos Padres, no sul de Pernambuco.

Por volta de 1980, alguns pesquisadores advogam na extinção dos cultos da Jurema (SCHULTES & HOFMANN, citados por OTT, 2002:673). No entanto, sabe-se que algumas formas cerimoniais associadas ao Toré têm sobrevivido entre os Xucuru da Serra de Ararobá/PE; os Kariri-xocó de Colégio, na divisa entre AL e SE (MOTA, 1987); os Atickum-Umã/PE (GRÜNEWALD, 1995); os Truká (BATISTA, 1995) e numerosos outros grupos espalhados pelo sertão nordestino (PINTO, 1995). Além disso, durante a segunda metade do século XX, a cerimônia indígena do Toré tem sido adotada simbolicamente por grupos umbandistas ao longo do litoral nordestino.

Em A Jurema em “Regime de Índio”: o caso Atikum (GRÜNEWALD, 1995) observa-se o contraste de alguns aspectos simbólicos desta reconstituição do uso cerimonial da Jurema em um contexto religioso contemporâneo e entre seu contexto tradicional. O texto trata de como, entre 1943 e 1945, os caboclos da Serra do Uma, descendentes de tribos indígenas desconhecidas, sabendo de que o governo brasileiro tinha como critério para concessão de terras para reservas indígenas a realização do Toré, procuraram a tribo dos Tuxá para aprender o ritual e conseguir o benefício. O que realmente acontece em 1949, quando os caboclos de Umã são elevados a categoria de índios Atikums (nome de um suposto ancestral mítico da tribo). Assim, o Toré e o uso ritual da Jurema são tradições a serem exibidas como certificados étnicos, devidamente reconhecidas pelo SPI (Serviço de Proteção ao Índio) e depois dele, a FUNAI. Grünewald observa, no entanto, que não se trata de um mero ardil para garantir a posse coletiva da terra, mas que os caboclos de Umã realmente passaram a acreditar em sua nova identidade Atikum. A Jurema deu a esses homens mais do que um pedaço de terra: uma identidade étnica une um grupo separando-o de outros, dando a ele um lugar no tempo e no espaço social.

Outro episódio, narrado de passagem neste texto, cita o trabalho desenvolvido por uma fundação holandesa, Friends of the Forest – Ethnopharmacological agents & rituals and drug dependency treatment research. A fundação, em conjunto com universidades e autoridades públicas holandesas, aplicava tratamento gratuito para reabilitação de viciados em drogas (heroína, cocaína, álcool, etc) utilizando-se principalmente da Ayahuasca. No entanto, devido ao corte de fornecimento pela entidade que gerencia o Santo Daime, que considerou o uso terapêutico da bebida fora dos seus preceitos religiosos, “os amigos da floresta” passaram então a pesquisar e utilizar os mesmos princípios psicoativos extraídos de outras plantas similares. Nesta “ayahuasca analógica”, a Jurema Preta (Mimosa Hostilis) passa a ser utilizada em combinação com sementes de Perganum Harmala, um arbusto do oriente médio muito conhecido por suas características sedativas[6].

Mas não é só: os próprios pesquisadores da fundação Friends of the Forest descrevem seu contato com os índios Atikum e como introduziram o uso desta nova fórmula em alguns de seus rituais (BARBOSA, 1998:27-28). Segundo eles, os Atikum não apenas reconheceram a potencialização dos efeitos da Jurema pelo Perganum Harmala, como também ficaram com sementes do arbusto para plantar no sertão. O texto insinua que houve uma assimilação cultural de técnicas de preparo científicas, importadas do exterior, pela “cultura Atikum” e que tal fato poderá ressuscitar a tradição da Jurema.

Não sabemos se realmente os Atikum levarão adiante os ensinamentos dos pesquisadores holandeses. Também não é possível saber, pelo menos através da pesquisa antropológica, se realmente existe uma tradição secreta da Jurema, que detenha o conhecimento do ingrediente inibidor. O certo é que hoje é mais fácil encontrar trabalhos espirituais com a utilização da Jurema na Europa que nas caatingas do nordeste brasileiro. Vivemos um processo de reconstrução mítica globalizada, em que uma planta genuinamente brasileira, símbolo de parte de nossa consciência étnica, está sendo reinventada em um contexto global contemporâneo e até mesmo re-importada de volta para as classes médias culturalmente mais sofisticadas da sociedade brasileira.

REVISÃO BIBLIOGRÁFICA III – O DMT

N,N-DMT ou N,N-dimethyltryptamine (C12H16N2) é um psicoactivo da família tryptamine, causa intenso visuais e forte estado mental psicodélico quando fumado, injetado, bufado, ou (quando levado com um MAOI tais como harmaline) quando engolido oralmente. N,N-DMT é muito chamou freqüentemente só “DMT”, embora este nome cause confusão algumas vezes com seu primo químico 5-MeO-DMT. Ele está presente em milhares de espécie de plantas e foi usado tradicionalmente em América do sul ambas em Ayahuasca e rapés.

DMT é um neurotransmissor químico presente naturalmente no corpo humano bem como em plantas muitas. Ele não causa dependência física ou psicológica. Mas há contra-indicações: os efeitos de fumado N,N-DMT são dramaticamente aumentado se usados por indivíduos usando MAOIs. MAOIs são enzimas comumente encontradas nos anti-depressivos Nardil (phenelzine), Parnate (tranylcypromine), Marplan (isocarboxazid), Eldepryl (l-deprenyl), e Aurorex ou Manerix (moclobemide). Indivíduos com casos de esquizofrenia em sua história familiar, com tendências à psicose depressiva ou ainda em estado emocional fragilizado devem ter cuidado com psicolédicos pois eles podem ser um ‘gatilho’ para a manifestação desses desequilíbrios.

NOME: N,N-Dimethyltryptamine

NOME QUÍMICO: N,N-Dimethyl-1H-indole-3-ethanamine

OUTROS NOMES: 3-[2-(dimethylamino)ethyl]indole, DMT

FÓRMULA QUÍMICA: C12H16N2

PESO MOLECULAR: 188.27

PONTO DE FUSÃO: 44.6-46.8°C (116°F) (crystals)

PONTO DE EBULIÇÃO: 60-80°C (crystals)

Fumar DMT é muito diferente que usar ayahuasca. Usar Jurema ou DMT sintética e um IMAO farmacêutico também não são o mesmo. Há significativas diferenças tanto químicas como na experiência subjetiva. Os inibidores também apresentam diferenças relevantes. A maior diferença entre P. harmala e B. caapi reside nos níveis de harmalina e tetrahidroharmina. Na P. harmala os níveis de harmalina são mais altos (o que explica sua maior efetividade IMAO) e os níveis de tetrahidroharmina são muito menores ou estão ausentes.

O uso de DMT em rapés dos índios da América do Norte e Central é documentado desde o início do Século VIII DC, mas suspeita-se que seu uso seja muito mais antigo. Os rapés Cohoba (da árvore Yopo) foram documentados em Columbia nos Séculos XVI até XIX. Em 1931, o primeiro DMT químico foi sintetizado por Richard Manske e chamado de “nigerine”. É ilegal possuir ou vender DMT nos Estados Unidos e na maioria dos países desde 1971.

Porém, o DMT ganhou notoriedade significante nos últimos 15 anos com Terence Mckenna. McKenna, foi o pioneiro no estudo sistemático das tradições de consumo de substâncias químicas. Autor de vários livros sobre diferentes substâncias psicoativas e religiosidade contemporânea (1993, 1995 e 1996) – estabelece uma associação estratégica entre duas hipóteses de outros autores, que se tornarão os cânones do movimento entheogênico[7]:

1. A hipótese de que foi através da ingestão de substâncias químicas psicoativas (principalmente o DMT) que os macacos se tornaram conscientes de si, dando início à evolução da espécie humana. Nesta hipótese, sugere-se que toda nossa experiência com o sagrado derivou originalmente do consumo de substâncias químicas.

2. A hipótese de Gaia (James Lovelock e Lynn Margulis) segundo a qual a biosfera da Terra é na verdade um organismo vivo. De forma que, mais do que dispositivos de poder para o controle social (as drogas), as substâncias psicoativas teriam como função primordial à re-ligação dos homens com a consciência telúrica do planeta.

Na mesma linha de raciocínio, Jeremy Narby, em seu livro A Serpente Cósmica, compara a dupla hélice do DNA às duas serpentes do símbolo do Caduceu e advoga a tese de que o DMT é a chave para o processo de evolução humana (o “programa lógico do mundo vegetal para rodar no cérebro humano”) do ponto de vista da biologia molecular.

Tais abordagens vêem suscitando grandes debates no campo da neurociência e psicologia cognitiva. Debates esses, que queremos, neste projeto, revisar e aprofundar. Como já adiantamos no início, de todas as contribuições recentes sobre o tema, consideramos o mais relevante o de Benny Shanon, sobre a Ayahuasca como instrumento de investigação da mente (in LABATE, 2002; pág. 631), através dos parâmetros teóricos da psicologia cognitiva. Para ele, há questões fenomenológicas de primeira ordem (o que está sendo experimentado?) e de segundo ordem (Há uma ordem e um sentido no que está sendo experimentado?). Há também questões de dinâmica, de contexto e teóricas gerais a serem discutidas sobre o uso do Ayahuasca. Por exemplo, em relação às questões fenomenológicas de primeira ordem, Shanon distingue as questões de conteúdo das de domínio e de estrutura. Assim, felinos, pássaros e répteis são as imagens mais recorrentes nos transes, seguidos de perto pelos palácios, tronos e imagens arquitetônicas celestiais.

A pesquisa destaca que as imagens são ‘universais da mente’ (semelhantes ao que Jung chamou de arquétipos[8]) pois surgem em indivíduos social e culturalmente diferentes. Esses conteúdos podem surgir de diferentes formas ou domínios e o encadeamento dessas formas com estes conteúdos forma estruturas narrativas paralelas aos rituais. E Shanon entrevê, através deste sistema cognitivo de conteúdos/domínios, os parâmetros estruturais da consciência e destaca pelo menos quatro aspectos relevantes em relação ao efeito do Ayahuasca: a percepção do pensamento como uma cognição coletiva, a indistinção entre o interior e o exterior, e as experiências desindentificação pessoal e de tempo não-linear.

Ou seja: quando tomam Ayahuasca as pessoas percebem que seus pensamentos não são individuais mas sim ‘recebidos em rede’ (a mente como um rádio); que não existe a distinção entre o sensorial e o sensível; podem se transformar em animais (jaguares e águias são freqüentes) ou em outras pessoas; e finalmente percebem o transcorrer do tempo de forma desigual, em que alguns segundos demoram séculos e horas se sucedem rapidamente e em que alguns momentos se experimentam a simultaneidade (ou a eternidade) temporal.

Quando baixamos arquivos no computador, pode-se perceber que alguns segundos demoram mais que outros, em função do peso do arquivo e da aceleração da conexão da internet. O que Shanon suspeita é que o mesmo acontece com o cérebro sob o efeito do Ayahuasca.

HIPÓTESE

Acredito que no aprofundamento neurocientífico das teses de Shanon. Nossa principal hipótese de pesquisa é que o DMT poderá, dentro de um setting clínico não-religioso, funcionar com uma substancia vital ao desenvolvimento psicológico humano no século que se inicia.

Acredito também que os países e regiões detentores das plantas ricas nesta substancia (como o nordeste em relação à Jurema e a Amazônia em relação à Ayahuasca) não podem ser privadas dos benefícios sociais e culturais decorrentes desta realidade.

Assim sendo submeto este primeiro esboço de projeto de pesquisa à avaliação crítica dos interessados, na esperança de que, com novas contribuições, ele se consolide e vingue em seus objetivos estratégicos.

Natal, 29 de outubro de 2003.

Marcelo Bolshaw Gomes

Bibliografia

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MCKENNA, T. – Alucinações Reais’ Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1993.

Alimento dos Deuses Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1995.

Retorno à cultura arcaica Rio de Janeiro: Record/Nova Era, 1996.

(com Ralph Abraham e Rupert Sheldrake) ‘Caos, Criatividade e o retorno do Sagrado – triálogos nas fronteiras do Ocidente’ São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1994.

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MOTA, C. N. & BARROS, J. F. P. de. Jurema: Black-Indigenous Drama and Representations. In: Ethnobiology: Implications and Aplications. Vol. 2. Belém, Museu Goeldi, 1990.

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SANGIRARDI Jr. Jurema. In: Os Índios e as Plantas Alucinógenas. Rio de Janeiro, Editorial Alhambra. 1983.

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[1] Jornalista, professor de comunicação da UFRN, doutorando em ciências sociais, currículo Lattes: http://genos.cnpq.br:12010/dwlattes/owa/prc_imp_cv_int?f_cod=K4792219T9

[2] V. http://dmt.lycaeum.org/ e http://www.erowid.org/chemicals/dmt/dmt.shtml

[3] V. principalmente www.santodaime.org; www.ayahuasca.com e http://yage.net/

[4] Mimosa tenuiflora (Will.) Poiret (=M. hostilis Benth.) e outras espécies de Mimosáceas no Nordeste brasileiro, principalmente a Hostilis, chamada Jurema Preta.

[5] A Jurema como nação: http://www.geocities.com/Athens/Atlantis/5418/

[6] Também conhecido como Syrius Rue, essa planta é conhecida desde tempos pré-históricos do Mediterrâneo até Ásia central. Está associada à tradição dos tapetes voadores árabes e das bebidas sagradas da Antiguidade (o Soma do Rg Veda e do Haoma do Avesta da Pérsia).

[7] Entheogênesis significa ‘origem divina’ (Theo = Deus, Gênesis = Origem). A palavra ‘entheógenos’, no entanto, surgiu em contraposição a denominação de ‘alucinógenos’ para designar a utilização de substâncias químicas com finalidades místicas, religiosas ou cognitivas. Segundo seus defensores a denominação de ‘alucinógeno’ para as substâncias químicas de efeito psíquico é preconceituosa, pois embute o sentido de entorpecimento. A enteogênesis seria, então, o uso não alienante das drogas.

[8] Para Jung os arquétipos eram elementos estruturais do inconsciente coletivo e para psicologia cognitiva, os universais da mente são determinantes da vida psíoquica.