por um_admin | jan 29, 2019 | Ayahuasca
Muitas pessoas que ainda não comungaram a Ayahuasca possuem inúmeras dúvidas sobre o que é, o que acontece após a ingestão, quanto tempo dura o efeito e o que acontecerá durante e depois. Existem alguns estudos acadêmicos que podem te ajudar a esclarecer algumas dúvidas e te deixar mais seguro em relação ao uso da Ayahuasca. Vamos lá?
Para trazer as referências sobre a atuação da Ayahuasca neste cenário contemporâneo, trabalharemos com a obra co-organizada pela autora Beatriz Labate e Wladimir Sena Araújo, “O Uso Ritual da Ayahuasca”, que traz observações diretas sobre a medicina, através de diversos artigos publicados por mais de 20 pesquisadores desta área. Beatriz Labate é uma das pesquisadoras mais renomadas deste contexto e já coordenou outros estudos sobre o uso ritual de plantas de poder.
Entre os campos de estudo, os que mais aparecem encabeçando as pesquisas, são: antropologia, medicina, psicologia e psiquiatria. Há ainda a literatura não-acadêmica, que, como afirmou Bia Labate, é formada por associados de grupos hoasqueiros e contempladores ou críticos destes rituais. Nesse sentido, Labate afirma que os livros de Alex Polari (1984) são os que mais se destacam. Outro fator importante a ser ressaltado é que entres as doutrinas mais conhecidas, a do Santo Daime é a que mais possui estudos realizados, chegando a ser desproporcional se forem comparados com outras religiões que fazerem uso do chá.
A Ayahuasca:
A Ayahuasca é uma bebida sacramental, enteógena, de origem ancestral, formada a partir da junção de duas plantas: Um cipó chamado Banisteriopsis Caapi, mais conhecido como Marirí ou jagube e uma folha do arbusto Psychotria Viridis, a Chacrona – que contém o princípio ativo dimetiltriptamina (DMT). Segundo Beatriz Labate (2004), a alquimia é também conhecida por santo daime, yagé, hoasca, vegetal, pindé, dápa, mihi, vinho da alma, professor dos professores, cipó dos mortos, pequena morte, entre outros. O nome mais conhecido, Ayahuasca, significa “liana (cipó) dos espíritos”.
O líquido é ocre-amargo. Em língua quíchua, significa o “vinho das almas ou liana dos sonhos. Aya quer dizer “morto” e ehuasca, “cipó”. Em pesquisa feita em Pucallpa, no Perú, Labate também encontrou o seguinte significado: “soga de muerto” ou soga de los muertos”, que significa “corda de morto” ou “corda dos mortos”. A palavra “Enteógeno” é derivada do grego “entheos”, seu significado é “Deus dentro”, por isso, ayahuaqueiros definem-a como uma substância que cria uma experiência de contato com o divino dentro de si.
De acordo com Labate, foi utilizada pelos Incas e por, pelo menos, 72 tribos indígenas diferentes da Amazônia. É utilizada em países como Peru, Equador, Colômbia, Bolívia e Brasil. Foi em 1930 que passou a ser utilizada em cultos organizados no Brasil, inicialmente pelo maranhense Raimundo Irineu da Serra, fundador do grupo Santo Daime. De acordo com Mauro Almeida (2004), o uso ritualístico da bebida saiu do âmbito indígena amazônico para, então, difundir-se entre seringueiros da floresta, cultos urbanos ou vegetalistas andinos. Expandiu-se pela América do Sul e até mesmo outros países, sendo os mais conhecidos o Santo Daime, a União do Vegetal (UDV) e a Barquinha. Em um livreto do grupo UDV há a seguinte declaração:
“Trata-se de uma religião que já existira na terra, muitos séculos antes de Jesus Cristo. Sua origem data do século X A. C., no reinado de Salomão, rei de Israel. Por razões diretamente ligadas ao baixo grau de evolução espiritual da humanidade na época, a União do Vegetal desapareceria por longo período. Ressurge entre os séculos V e VI, no Peru, na civilização Inca (cujo advento e apogeu a historiografia oficial registra apenas entre os séculos XIII e XIV).” (“União do Vegetal Hoasca Fundamentos e Objetivos”, p. 35)
A Ayahuasca é considerada como uma substância capaz de conceder experiências com o Divino e com outras dimensões. Uma bebida sagrada. Ela atua como orientadora de conduta e permite a evolução espiritual e material do indivíduo. Alguns associados do grupo chamam de “planta mestra” ou “planta de poder””.
Segundo Jacques Mabit (2004) a bebida é uma planta mestra e possui as características para promover a experiência de sentido. O efeito da Ayahausca é alcançado em virtude da composição química das plantas que a compõe. Dentre os efeitos do chá, está a produção de estados visionários intensos, aumento da sensibilidade auditiva, alteração da frequência respiratória, modificação da noção do tempo, sensações de enjoo, visões celestiais ou demoníacas, meditação profunda, estados de êxtase espiritual, viagens astrais, mirações e uma “limpeza” -, que seria o processo de descondicionamento e descontaminação de antigos invólucros, musculares e psíquicos. Por isso, o sujeito passa por um processo purgativo, que Zuluaga definiu como limpeza do organismo (vômito e diarréia), dos sentimentos (através de lágrimas, gargalhadas e até mesmo da fala) e lembranças, assim, tem também um efeito curativo. Ao mesmo tempo que encanta alguns participantes ela pode também chocar.
O fundamento do conteúdo das sensações durante o transe com yagé reside precisamente nesta experiência catártica, que coincide com a já clássica e célebre descrição de Eliade:
“‘sofrimento, morte e ressurreição rituais’. O yagé é o veículo sagrado para ingressar no mundo espiritual, mas ao mesmo tempo é o encarregado de limpar o viajante para que possa ingressar em estado de pureza nesse mundo.” (ZULUAGA, 2004, p. 144. In: O Uso Ritual da Ayahuasca, Orgs. Labate e Sena)
Mabit também explana que, no contexto geral, a Ayahuasca amplia as percepções sensoriais e a atividade cerebral, onde o sujeito percebe um alargamento da sua própria consciência permitindo-o transcender seu ego. Desta forma, aumentam os insights, a capacidade para refletir e de resolver problemas. Para o autor, as visões são capazes de transformar a vivência diária do indivíduo, sua conduta e seu caráter, mesmo que ele não tenha reconhecido o sentido e a raiz de suas visões. O sujeito, então, tem a oportunidade de descobrir realidades múltiplas ou outras óticas sobre a realidade na qual existe, integrando seu coração, seu corpo e sua materialidade. Além desses efeitos, Mabit também afirma que a Ayahuasca é uma substância psicoativa para as pessoas que buscam novas perspectivas sobre as questões existenciais.
Após o sujeito ingerir a Ayahuasca, o efeitos começam em meia hora e duram em torno de três ou quatro horas. Além dos efeitos físicos, Zuluaga esclarece que o transe xamânico que a Ayahuasca proporciona, possibilita uma viagem ao mundo dos espíritos e aqueles que tiveram esta experiência não duvidam nenhum segundo sequer da veracidade de suas visões, sensações, sons e ensinamentos recebidos. Há também no documentário, esclarecimentos de que os neurônios são energizados, e aumenta-se a capacidade intelectual, paranormal e criativa do sujeito que a ingeriu.
Também existem relatos em nosso site que vão de encontro ao que os estudos definem sobre o assunto, de experiências que permitiram visões esclarecedoras, transformações nas relações interpessoais, êxtase espiritual, intuição e clareza para tomada de decisões, integração com o universo, viagens astrais e entendimento sobre seu “real ser”.
Inúmeras pesquisas tem mostrado que o uso da Ayahuasca não é maléfico, mas sim terapêutico, pois concede transformações positivas e benéficas aos indivíduos que tiveram contato com a bebida. O psicólogo José Arturo Costa Escobar (2012), em sua tese sobre a saúde mental de religiosos ayahuasqueiros, demonstra que a atitude de indivíduos após o contato com o chá acontecem por processos psicológicos que permitem a transformação, principalmente no que diz respeito a reestruturação do ego e do self.
Escobar aponta que o princípio ativo DMT da folha da Chacrona que forma a Ayahuaca, evidencia segurança na administração em sujeitos saudáveis e que, em estudo clínicos defendem a Ayahuasca como ingrediente importante na psicoterapia.
“Acessos psicológicos e psiquiátricos de membros do Santo Daime nos Estados Unidos mostraram resultados que sustentam a segurança da administração da ayahuasca de modo ritualizado e sugerem seu potencial psicoterapêutico”. (ESCOBAR. 2012. p. 39)
De acordo com a pesquisa de Escobar, os principais resultados foram a verificação de que os 60% dos integrantes da análise, que apresentavam sérios problemas em seu passado, asseguraram que melhoraram psicologicamente depois que começaram a frequentar grupos religiosos com a Ayahuasca. Dos que tinham problemas com drogas e álcool, num quadro de 24 pessoas, 22 delas afirmaram que se libertaram de seus vícios após começarem a frequentar o Santo Daime. Parece que, de acordo com Escobar, os motivos reais pelos quais o Yagé promove esta melhoria nos indivíduos ainda é uma incógnita para ciência. Contudo, é notório observar que nestes sujeitos se observa um nível saliente de espiritualidade. Escobar relata que o reconhecimento da Ayahuasca como opção de transformação faz com que ela seja utilizada para tratamento de abuso de substâncias, principalmente o álcool.
Ainda tem dúvida sobre o tema? Escreva abaixo e compartilhe com a gente. Continue acompanhando nosso blog que sempre traremos artigos a respeito.
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por um_admin | maio 3, 2017 | Ayahuasca
Revista ISTO É – Entrevista com Patrick Druot
Druot procurou nos Xamãs o que não achou na ciência
O físico Patrick Druot, que já vendeu um milhão de livros sobre xamanismo, saber de culturas ancestrais, diz que vêm aí boas mudanças
Patrick Druot, 53 anos, pós-graduado na Universidade de Columbia, consegue enxergar a virada do milênio com um otimismo contagiante, apesar do quadro de guerras, desemprego e desigualdade social. Ele arrisca dizer que nos espera um tempo de mais tolerância, compreensão e amor. Esse otimismo é resultado de 20 anos de experiências com expansão da consciência e contatos com culturas antigas. Nesse período, conviveu com tribos indígenas e aborígenes na América do Norte e na Oceania, onde estudou o trabalho dos xamãs, líderes espirituais conectados com a natureza. Segundo Druot, em breve ocorrerá uma mudança porque as pessoas buscam cada vez mais respostas espirituais para dar sentido à existência. “Acho que o Brasil terá um papel importante neste despertar”, ele anuncia. Até os 35 anos, ele mesmo acharia graça no que acredita hoje. De família católica, deixou de ir à missa aos 15 anos para tornar-se um cético convicto. Foi depois de se pós-graduar em Física que começou a ter contato com o fenômeno da expansão da consciência e especializou-se em Terapia de Vidas Passadas (TVP), que pesquisa e pratica no Instituto de Pesquisas Físicas e da Consciência, em Paris. “Essas experiências me reconectaram a Deus.” Quanto a frequentar uma igreja, ele diz: “Sim. Uma floresta, uma praia, o mundo todo é uma catedral.” Em sua sétima visita ao Brasil, para dar workshops sobre vidas passadas e lançar seu quinto livro, O físico, o xamã e o místico (Editora Nova Era), ele deu esta entrevista.
ISTOÉ – O que é um xamã?
Patrick Druot – É uma pessoa investida de dons de profecia, dons de cura, de percepção a distância. Os xamãs dizem que os primeiros professores nos tempos antigos eram as plantas e os animais. Eles foram os primeiros líderes religiosos, os artistas, os médicos. Sua herança enorme influenciou, milênios mais tarde, as primeiras religiões organizadas. Cristianismo, budismo, taoísmo, tudo isso tem origem xamânica.
ISTOÉ – O que levou um físico como o sr. se interessar pelo tema?
Druot – Há 20 anos, comecei a me interessar pelo que se costuma chamar de estados alterados de consciência. Conhecia-se a atividade da superfície do cérebro, mas nunca explicaram como ele funcionava e o que o fazia funcionar. Durante muitos anos, me interessei pelo fenômeno da vida antes do nascimento e tentei entender onde essa memória estava gravada. A ciência não respondia a essas indagações, então comecei a estudar diversas tradições orientais: as escolas de ioga, o budismo e, como morei dez anos nos Estados Unidos, trabalhei e vivi com índios americanos. Conheci suas cerimônias e seus rituais de cura e me interessei pela origem desses estados de consciência.. E aí foi preciso voltar mais de 20 mil anos, ao tempo dos primeiros xamãs. Foram eles, no período paleolítico superior, os primeiros a passarem para o outro lado e a explicar como era estruturado o mundo xamânico.
ISTOÉ – O xamanismo faz parte da história de todos os povos?
Druot – Sim. O termo xamã foi adotado pelos antropólogos para definir todos os representantes religiosos e seres particulares de todas as raças. O termo tem origem siberiana. Saman, quer dizer aquele que sabe, aquele que é. Na tradição xamânica mundial, os xamãs são aqueles que vêem o mundo como um composto de três mundos. Um físico, povoado pelos espíritos da natureza, um mundo subterrâneo e um terceiro, sublimado. Em todos os grupos, seja na Sibéria ou na Nova Zelândia, as tradições sempre batem: são três mundos ligados por um eixo central. A imagem varia. Pode ser uma corda, uma escada, uma montanha. O dom do xamã é viajar pelo intermundo, ao longo dessa corda que atravessa os três mundos.
ISTOÉ – Em seu livro, o sr. afirma que a ciência moderna ainda não distingue psicose de despertar xamânico. Por quê?
Druot – Há um psiquiatra inglês que diz que o sábio e o psicótico estão no mesmo oceano. Mas enquanto o sábio nada, o psicótico se afoga. Eles têm percepções idênticas, mas o psicótico não sabe ordenar o saber. Até o fim dos anos 50, a ciência pensava que o xamã era um esquizofrênico. Foi preciso que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss afirmasse que eles sabiam exatamente o que os xamãs faziam e que havia uma lógica em seus rituais. Não eram selvagens porque moravam na floresta, era o mundo deles.
ISTOÉ – O que é a física xamânica?
Druot – Eu queria saber como o xamã viajava pelos três mundos, onde estão esses mundos. Em física, sabemos que o universo é feito de vibrações. Supus que o xamã era capaz não apenas de se projetar num mundo de vibração, mas de mudar essa vibração. Na física quântica, diz-se que tudo está ligado ao chamado tecido subjacente do universo. No mundo do xamanismo dizem que estamos todos ligados. Os celtas e os druidas viam o mundo como uma teia de aranha tridimensional. Se puxarmos um pedacinho aqui, toda a teia vibra. Em física quântica diz-se que o universo está ligado por cordas supersensíveis. Para mim, havia uma ligação entre o xamanismo e a física quântica porque ambos trabalham com vibrações, oscilações, sons. E os xamãs sabem disso.. Foram os primeiros físicos da história.
ISTOÉ – Por que as tradições xamânicas são apenas orais?
Druot – Nossa cultura ocidental privilegia o lado esquerdo do cérebro, lógico, racional, ligado ao tempo linear. E também é ligado à palavra escrita. Esse tipo de tradição xamânica funciona principalmente no lado direito do cérebro, ligado à tradição oral. No Taiti, encontramos os sacerdotes maoris que conservam a tradição do povo. Eles são capazes de contar a história de 20 gerações de sua família. Levam-se de 30 ou 40 anos para aprender a tradição oral, mas nada é deformado. É o mesmo motivo pelo qual a maioria dos povos tradicionais não acredita em reencarnação. Eles não têm a mesma concepção de tempo, que não é linear para eles. Esses povos vivem o agora.
ISTOÉ – E o que o sr. acha?
Druot – Buda tem uma boa resposta.. Ele disse que não se pode dizer que existe, mas também não se pode dizer que não existe.. Conheço um número enorme de pessoas que tiveram experiências de vida anterior. Não podemos provar cientificamente, mas há muitas evidências. E o potencial terapêutico da regressão é impressionante. Muita gente passa por diversos médicos sem conseguir se curar e, com duas ou três sessões de regressão, descobrem-se os motivos da doença e ela passa. Funciona em cerca de 80% dos casos.
ISTOÉ – Ainda há muitos xamãs hoje?
Druot – Com o expansionismo branco, a partir do século XVI, essas culturas tradicionais foram proibidas e seus territórios foram tomados. Nos Estados Unidos, o xamanismo desapareceu quase totalmente. Nos anos 60, no entanto, os índios americanos começaram a resgatar antigos ensinamentos. Só em 1978 o presidente Jimmy Carter assinou o American Indian Religious Freedom Act (lei da liberdade religiosa indígena). Atualmente, muitos americanos com problemas psicológicos vão se tratar com os índios. Esses xamãs são inacessíveis, não falam facilmente. Encontrei um xamã maori na Polinésia que disse: “Vocês tiraram nossa língua e nossa cultura e nossos filhos não falam mais taitiano. Não vamos ensinar nossas tradições.” É um trabalho muito lento. Levamos muitos anos. Só se você começa a pensar com o lado direito do cérebro, consegue se comunicar com eles.
ISTOÉ – É possível desenvolver o lado direito do cérebro?
Druot – Sim. Mas leva algum tempo.. Porque o mundo ocidental faz parte de uma cultura do lado esquerdo, enquanto os povos tradicionais têm uma cultura do lado direito. O ideal não é usar apenas um dos lados, mas conseguir sincronizar os dois. Viver no mundo material, mas com uma percepção diferente. Dessa maneira, o mundo torna-se um teatro mágico.. Quando o lado esquerdo pára de bloquear, pode-se ir ao mundo dos sonhos. O escritor mexicano Carlos Castañeda já contava em seus livros como aprendeu com um xamã mexicano a ir ao mundo dos sonhos e disse que é tão real quanto este aqui.
ISTOÉ – Como foi a sua experiência com o Santo Daime?
Druot – Não era o Santo Daime que me interessava, mas a ayahuasca (planta que produz um chá alucinógeno utilizado pela seita amazônica). Mas eu não tinha contatos diretos. Não se pode ir à floresta buscar a planta sozinho. Em 1994, meu antigo editor brasileiro fez um contato com Alex Polari, um dos líderes da seita em Céu do Mapiá. Tenho respeito pelos rituais, pela igreja, mas não participei. Disse desde o início que me interessava pela planta que, no princípio, era uma planta xamânica. Em abril de 1995, eu e minha mulher, Liliane, passamos duas semanas na floresta e fizemos muitas experiências sob o efeito da ayahuasca. O cérebro funciona de forma totalmente diferente. Tudo se abre. Você pode ver espíritos, as auras. Fizemos até contato telepático. Por três ou quatro minutos, soubemos exatamente o que o outro pensava. Sentia e via a Terra respirar, num movimento claro. Tudo se organizava em fractais.
ISTOÉ – De que serviu a experiência?
Druot – A ayahuasca é usada para propósitos religiosos, alguns usam para curar, tirar pessoas da dependência de drogas, álcool. Mas em minha opinião, é muito mais do que isso. Acho que ainda não se sabe usá-la para conhecer o outro e a si. Com ela, se poderia descobrir muito sobre as causas de doenças físicas e emocionais. Essa experiência provou o que estudei por 15 anos: só utilizamos uma parte mínima do cérebro. Não tomamos mais a planta, mas ainda temos algumas vibrações e percepções que vêm dela. Não vemos mais uma floresta como antes. Nosso contato com a terra foi modificado. Há uma percepção mais aguçada. Traz sentimentos de tolerância, de respeito e de amor.
ISTOÉ – É possível passar por este tipo de experiência sem a ayahuasca?
Druot – Talvez. Eu já tinha percepções desde 1985, estimulando uma visão vibracional. Há um campo magnético ou vibracional que circunda todas as coisas vivas, até nós mesmos. E tudo o que acontece com você está escrito neste campo. É uma técnica. Tem de ser feito com sons, sobretudo com tambores, que são os batimentos cardíacos do criador. Quando se está em sincronia com uma batida de tambores, é possível fazer a viagem. Passei por essas experiências com os índios do Canadá, nas ilhas do Pacífico, nos EUA. O uso de plantas é específico da América do Sul e Central, onde se usa o peiote.
ISTOÉ – A experiência é similar?
Druot – A ayahuasca é mais imediata ao abrir as portas psíquicas, as portas da percepção. É como se o cérebro se abrisse. Tecnicamente falando: normalmente, vemos o mundo através de nossos olhos. Mas não vemos como o cérebro vê. O olho é um instrumento de análise de frequência, como o ouvido. Isso só foi descoberto nos anos 60. Isso significa que vemos e escutamos através dos olhos, mas não é como o cérebro vê e escuta.. Com a ayahuasca, você vê e escuta como o cérebro. É uma percepção holográfica do mundo. Porque o cérebro é um holograma. Ele se abre para você. Mas acho que não se pode tomá-la de qualquer jeito, é preciso uma boa orientação, alguém que te ajude a passar pelos vários estágios da ayahuasca. E também é preciso estar junto à natureza. Não acho cabível tomá-la num lugar fechado, por exemplo. O que acontece é que a planta abre todos os canais, as pessoas vêem cores, caleidoscópios e ficam felizes. Mas é muito mais do que isso.
ISTOÉ – Como o sr. se preparou para a experiência?
Druot – Antes de tomar a ayahuasca, estudei o trabalho de um etnofarmacobiologista da Finlândia, desenvolvido durante seis anos. Eu sabia que não havia efeitos colaterais nem risco de dependência.
ISTOÉ – O sr. sentiu medo?
Druot – Sim, porque nunca tinha tomado nada parecido na vida, nenhuma outra substância alucinógena. Não sabia exatamente o que esperar. Quando comecei a sentir os efeitos, me senti mais confortável, entendi o que a planta me ensinava.
ISTOÉ – O sr. acha que há hoje uma maior abertura do mundo ocidental para estes ensinamentos?
Druot – Sim. Em 15 anos, vendi um milhão dos meus cinco livros, e recebi cerca de 60 mil cartas. Acho que estes números podem ser tomados como uma prova de um interesse crescente. As pessoas querem saber quem são, qual o seu lugar no mundo. Não somos robôs, somos seres humanos. Entre muitos povos índios, o próprio nome do povo significa seres humanos, como os cheyenes americanos. No Havaí, os locais chamam os brancos de haoles, que significa os que são mortos por dentro. Eles dizem que não estamos vivos, porque não estamos conectados com os espíritos e a natureza.
ISTOÉ – A que o sr. atribui esse interesse?
Druot – No século XVII, houve dois gênios que criaram os fundamentos da ciência moderna: René Descartes e Isaac Newton. Eles começaram a explicar muitos fenômenos que não se explicavam antes, mas o problema de suas visões foi ver o ser humano como uma máquina, um relógio. Desprezaram a consciência e o espírito. A ciência se pulverizou. Olha-se apenas o corpo, não o espírito. Acho que o terceiro milênio trará a reunião de tudo. Os xamãs dizem que as doenças entram quando a pessoa está separada dela mesma e do mundo. Os índios navajos americanos têm um sistema médico que reconecta a pessoa a ela mesma e ao universo. Agora, há na Universidade de Medicina de Phoenix, no Arizona, um departamento intercultural com xamãs navajos e médicos americanos, que tentam entender como eles curam pessoas desenganadas de câncer, por exemplo.
fonte:
http://www.terra.com.br/istoe/vermelha/157102.htm
por um_admin | maio 3, 2017 | Ayahuasca
LÉO ARTESE ENTREVISTA O DR. ELISEU LABIGALINI JR.
Entrevistei o Dr. Eliseu Labigalini Jr., Médico-psiquiatra, psicoterapeuta junguiano. Mestre em psiquiatria pela UNIFESP – Universidade Federal de São Paulo (Escola Paulista de Medicina). Especialista em fármaco-dependências e membro da Doutrina Santo Daime
Transcrição: Mariana Waldow
Léo Artése: Gostaria, antes de tudo, de lhe pedir que explicasse o surto, o que acontece nesse processo.
Dr. Eliseu: Esse termo “surto” é usado para pessoas que entram no que chamamos de “surto psicótico”. Um surto psicótico é a situação em que uma pessoa se desconecta da realidade, passando a ter alterações de pensamento e das percepções. Essa percepção alterada da realidade é o delírio, que muitas vezes no surto é persecutório, e a pessoa sente que está sendo perseguida ou ameaçada constantemente. Podem ocorrer alucinações auditivas e visuais eventualmente, por exemplo, ouvir vozes que ameaçam, que recriminam. O surto psicótico pode ser a primeira manifestação da Esquizofrenia, mas nem todo surto é necessariamente o início do processo esquizofrênico.
Há diversos tipos de surtos psicóticos. Alguns poderíamos chamar de “benignos”, que seria, por exemplo, um surto que ocorre após um estresse muito forte, então a pessoa entra no surto mas ele é passageiro. Este é um surto reativo, assim como podem ter outras pessoas que vão reagir com pânico, que está mais relacionado com a ansiedade. As reações diante de um estresse são individuais. É importante perceber que a esquizofrenia será percebida ao longo do tempo, ela é um diagnóstico clínico e depende da observação constante. No caso dos surtos se repetirem, e o diagnóstico ser esse, então a pessoa entrará em tratamento específico. Só o tempo, o tratamento e a evolução do quadro poderão confirmar a natureza de um surto e de sua possível origem.
De qualquer modo, estas pessoas que estão passando por esse momento de “surto”, são as pessoas menos indicadas a tomar a Ayahuasca. Isto ocorre porque a Ayahuasca é uma lente na sensibilidade, e então se a pessoa está vivendo uma ideação confusa, achando por exemplo que ela está sendo perseguida, ela se sentirá mais perseguida ainda, se ela estiver ouvindo vozes, irá ouvir mais vozes, e assim por diante. Conseqüentemente, ela pode colocar a sua própria vida e a de outras pessoas em risco, dependendo do grau do surto. Quanto mais grave o caso, pior é a interação com a Ayahuasca.
Léo: O desenvolvimento do surto decorre da predisposição destas pessoas?
Dr. Eliseu: Estes quadros podem advir de predisposição genética, assim como de um histórico de vida que lhes estimulou ao isolamento;podem ser pessoas que tiveram dificuldades profundas ao se relacionarem na vida. Na Ayahuasca, no entanto, alguém que nunca surtou pode ter um surto. Considerando que a experiência enteógena é muito profunda, o contato com o inconsciente, com a sensibilidade e com os sentimentos, uma pessoa que já estava nesse processo psicótico, mesmo que num grau tímido, pode ter um surto a partir da experiência da ingestão da bebida. Como ela poderia ter esse surto se perdesse um familiar, por exemplo. Qualquer experiência traumática ou forte pode dar início ao surto. A bebida expande a consciência e também a realidade daquela pessoa, e então ela apenas concretiza algo que já estava para acontecer.
Léo: A pessoa então já tinha a predisposição, e a Ayahuasca permite a emergência desse processo?
Dr. Eliseu: A Ayahuasca então acelera a emergência de um processo que emergente, desencadeia um processo que está a caminho de se realizar. Não é então a Ayahuasca em si que provoca o surto, e sim a predisposição da pessoa diante do seu próprio processo. É impossível prever diante de iniciantes, quem está apto a surtar, mesmo diante dos históricos. Então a indicação é observar com muito cuidado cada um, e se a pessoa apresenta estes sintomas, ela deve ser proibida de ingerir Ayahuasca, deve ser encaminhada para o tratamento psiquiátrico e só retornará a partir do momento que o médico responsável e o comando do ritual se comunicarem para acertar a conduta mais indicada para o caso. O acompanhamento médico é essencial, para que o caso permaneça controlado e o retorno da pessoa seja previsto, assim como a dosagem da bebida mais indicada e outros detalhes pertinentes a cada caso. Isto ocorre porque o surto psicótico, ou o princípio de esquizofrenia devem estar encerrados antes da pessoa ingerir a bebida novamente, e isto só ocorre com o uso de medicação e acompanhamento médico. A dosagem de Ayahuasca é muito pequena para quem retorna do surto e volta a tomar a bebida. O fato é que essas pessoas são muito sensíveis, e então não podem ser expostas a altas doses.
Já vi e acompanhei casos de esquizofrenia, e quando estão sob controle não há maiores problemas, mas a medicação de manutenção deve estar sendo tomada, e as doses da bebida diminuídas nos rituais. Assim eles vivenciam o ritual, a força da bebida e não entram em surto. A Ayahuasca e a medicação não devem interagir a ponto de afetar a pessoa.
Léo: É possível perceber a diferença entre um surto psicótico ou esquizofrênico?
Dr Eliseu: Só o tempo dirá, a análise clínica confirmará o quadro.
Agora, é importante perceber que é difícil fazer com que a pessoa aceite tomar menos da bebida, e se tratar, isso é um ponto muito delicado. Há muitos casos em que a pessoa pode se retirar e buscar outros lugares, ou ainda não aceitar que deve se tratar e buscar apoio médico. No caso da paranóia, a pessoa realmente acredita que está sendo perseguida, e então não consegue absorver a informação toda. Então aqui reside o perigo de ingerir a bebida sem estar podendo: o paciente não perceberá que está alterado em função da sua doença. E seu quadro tende a piorar. São quadros raros, mas passíveis de acontecer. Vale também citar que poucas pessoas pretendem se tratar, quando o quadro é percebido. De 1% que chegam dentro destes quadros acima citados, menos do total concordam com seu tratamento. Tendem a chegar poucas pessoas assim, mas chegam. Como esses não se tratam de casos que a Ayahuasca ajuda, as próprias famílias percebem o desajuste em geral.
Léo: Deste 1% que chega, quantos aceitam tomar o remédio e realizar esse percurso proposto de tratamento?
Dr. Eliseu: Poucas pessoas. Na prática são poucas. A pessoa é geralmente muito dependente da família, e então acaba sendo pressionada.
Outra questão para se observar é o fato de que essas famílias, geralmente super envolvidas com o paciente, não compreendem o universo Ayahuasqueiro, e então isso acaba sendo outra complicação para se lidar. Basta pensar o quanto a família em si também participa do processo de doença dos pacientes… É muito profunda a relação entre paciente e seu histórico familiar.
Léo: Esses casos de surto geralmente tem antecedência familiar?
Dr. Eliseu: Questões genéticas são também influentes nestes casos de doenças psiquiátricas, e as famílias tendem a ser desorganizadas, desestruturadas; ou ainda existem casos de esquizofrenia na família. O quadro, entretanto, é psiquiátrico puramente, sem envolver o quadro neurológico, por exemplo.
Léo: O uso de lítio tem relação com um quadro neurológico ou psiquátrico?
Dr. Eliseu: O quadro bipolar é um quadro onde encontram-se dois pólos: o da depressão e o da euforia (antigamente chamada de mania). Quando o paciente encontra-se em uma crise de exaltação, um dos pólos comportamentais do bipolar, e quando o grau de ansiedade é grande, a semelhança com o surto psicótico é alta. Neste caso, a pessoa fica confusa, com delírios de grandeza, não dorme, permanece em vigília por horas seguidas, muito acelerada e fala muito rápido. Isto é chamado pela psiquiatria de “crise eufórica”. É complicado o uso de Ayawaska neste caso também, pois o estado geral da pessoa irá se intensificar nesta linha em que se encontra. É necessário que o paciente seja retirado da crise em que se encontra para estabilizar o seu humor, e poder então, eventualmente, repetir o uso da bebida. Nestes casos, a psiquiatria trata seus pacientes com estabilizadores de humor, e o Lítio é um deles. Estas medicações permitem com que o paciente não entre nestas crises bipolares tão freqüentemente, como diz o próprio nome, estabilizam o seu humor. O Lítio, por exemplo, não é um sal que existe no nosso corpo. Contudo, quando em contato com o corpo humano, oferece este equilíbrio na oscilação do humor, tanto para a depressão quanto para a euforia. O Lítio não é acusado no sangue de quem não o toma, logo, para o paciente que é tratado com este medicamento, exames de sangue rotineiros são feitos até que se atinja a dose ideal para aquele caso específico e estabilize o humor da pessoa. As pessoas costumam pensar que nós temos o Lítio no sangue, e isso não é verdadeiro. Somente pessoas que o ingerem acusam a sua presença. Ele é utilizado para corrigir o distúrbio da bipolaridade. A longo prazo, se a pessoa utilizar o medicamento por 20 ou 30 anos – que é a média de consumo deste químico, visto que a bipolaridade não tem cura – pode ser tóxico para os rins e a tiróide. O paciente que cessa a ingestão do estabilizador de humor, retorna as crises bipolares; logo, em geral, é mantido sob essa medicação por toda a vida. As crises são fortíssimas, e realmente impedem a pessoa de viver uma vida minimamente regrada e lúcida.
Léo: O lítio faz mal para a saúde?
Dr. Eliseu: O lítio não é necessariamente tóxico, mas há essa possibilidade. A medicina já descobriu outras medicações que são utilizadas no lugar do Lítio, pois ele é eficaz, mas muito tóxico.
Na polaridade da depressão, se a pessoa não estiver demasiadamente deprimida, tomar a Ayahuasca irá beneficiá-la, pois esta bebida tem DMT, que é a substância precursora da serotonina, então na corrente sanguínea o efeito é positivo, e chega no cérebro quase como serotonina. É isso que promove o estado de consciência ampliado experimentado. Os anti-depressivos aumentam a serotonina no cérebro, exatamente o que a Ayahuasca promove. Existe uma gama grande de remédios anti-depressivos. Os mais utilizados atualmente, são aqueles que apresentam menos efeitos colaterais como sonolência por exemplo, ou ainda baixo grau de dependência química. Há vários, entre eles a fluoxetina, a sertralina, a paroxetina…
Léo: Quais antidepressivos não podem ser associados a bebida?
Dr. Eliseu: O único deles que não pode ser associado à ingestão de Ayahuasca é a fluoxetina. O conselho nestes casos é que a pessoa que utiliza este tipo de medicamento encerre o seu uso uma semana antes, literalmente. No mínimo três dias antes. Não há perigo, mas é uma precaução importante. Já houve casos de pessoas que ingeriram Ayahuasca tomando fluoxetina, e não aconteceu nada de grave. Pode haver interação em algum nível, mas seria um quadro onde a pessoa sentiria muita dor de cabeça, pode sofrer ânsia de vômito, pressão alta e enjôo. São casos raros, pois a dosagem de fluoxetina deveria ser muito alta para surgirem esses sintomas. Eu particularmente nunca vi nada assim acontecer.
Quando a pessoa está num quadro muito grave de depressão, ela pode se tornar psicótica. Assim como no quadro da euforia, a pessoa também pode entrar em surto psicótico. É um delírio ao contrário do citado anteriormente. Nesse caso a pessoa sente a sensação de ruína, de que está com o corpo morto, e sua depressão é tão intensa e negativa que ela se encontra num estado de depressão grave. E estas confusões aumentam a distorção da realidade. Se esta pessoa tomar a Ayahuasca neste estado, ela tende a se afundar neste estado. Se a depressão está em um grau mais ameno de depressão, ela se beneficiará da bebida pois o efeito anti-depressivo atuará; e paralelamente, vale lembrar que o contato com o divino, com a experiência mística, também lhe trará benefícios. Então, a Ayahuasca não é recomendada para casos extremos de depressão ou euforia.
De qualquer forma, quanto mais cedo a pessoa for orientada para buscar apoio médico, menor é seu sofrimento e mais simples será sua cura. Os prejuízos da sua vida serão menores, menor impacto para familiares e amigos também; no caso de grupos Ayahuasqueiros, menor se torna o risco para o grupo em termos de responsabilidade, e menor o risco para ela própria. O tratamento preventivo é o melhor, pois os casos no início representam menos complexidade para todos os envolvidos. Estes casos citados exigem muita sensibilidade no convívio, pois temos que considerar que a cura, da forma tal qual idealizamos, muitas vezes não ocorre nestas doenças, então o processo de tentativa e erro deve ser vivido com precaução. Então a busca de um equilíbrio verdadeiro é do paciente e de todos aqueles em volta dele. O conforto e o convívio são conquistas daqueles que estão envolvidos e do próprio paciente. O processo de cura é também facilitado pelo próprio uso dos medicamentos, assim a doença passa a ser controlada minimamente. Seguir uma única linha de tratamento também ajuda, pois a oscilação entre processos terapêuticos também atrapalha. O paciente muitas vezes se sabota através da sua falta de firmeza com o referencial terapêutico. É difícil o processo de aceitar que a doença está instaurada. Essa realidade causa na pessoa resistência ao trabalho do médico.
Léo: Quanto as pessoas que tentam muitas terapias, oscilam entre tratamentos, e seguem tomando o Daime, e tem um diagnóstico bipolar por exemplo. Aí percebemos que a pessoa está ou muito elétrica ou muito deprimida. E esperar a cura da pessoa é uma ilusão, pois ela pode não se curar. Então o equilíbrio virá com o tempo? Seguir um único tratamento é muito importante, não?
Dr. Eliseu: Há pessoas que percebem, dentro de um grupo Ayahuasqueiro, que há gente com problemas psicológicos. Contudo, o grau de recepção da pessoa para receber um comentário é baixo, ela ainda não consegue ouvir. O fato é que dentro do quadro das dependências, a sua gravidade varia de alta a baixa. Em qualquer caso, há a questão da adesão ao tratamento. O doente deve ser convidado a cura. Eu trabalho no ambulatório do Hospital Paulista e nós atendemos dependentes de drogas apenas. O melhor jeito que encontramos para receber as pessoas foi através da criação de uma equipe de Acolhimento. Então todo dia esse acolhimento acontece as 11 da manhã, para todos os pacientes que vão chegando naquele período. Como sabemos que é difícil aderirem ao tratamento, damos muita importância pra esse grupo diário. Desta forma, se o paciente permanecer presente nestas reuniões, então está apto a passar por um atendimento individual. Assim se percebe o grau da intenção do paciente em se tratar; 90% dos pacientes faltam se convidados a iniciarem um tratamento individual pelos mais variados motivos. O investimento do paciente na sua cura é intransponível. A autocrítica e a consciência de que há um problema comportamental é essencial para que o processo terapêutico aconteça com sucesso. Do ponto de vista de um grupo Ayahuasqueiro,se uma pessoa não traz problemas ou dificuldades para o grupo, então ela deve ser respeitada dentro do seu processo. Claro que devemos seguir o bom senso, e se percebermos que ela está se destruindo ou passando por problemas, poderemos nos envolver. No caso de dependência de drogas, as pessoas têm uma boa transformação com a Ayahuasca. A recuperação destas pessoas é observada positivamente, a Ayahuasca é muito eficaz neste sentido; mas devemos lembrar que há casos muito graves dentro deste espectro. E num grupo chega de tudo, então a observação cuidadosa é a chave da história. Os casos muito graves serão dificultosos para qualquer âmbito terapêutico, mesmo o Ayahuasqueiro. Já observei um caso de uma pessoa dependente do craque, e mesmo no daime tinha muita dificuldade em firmar a sua cura. Não abria nenhuma possibilidade de qualquer ajuda. A pessoa se mantinha naquele ciclo repetitivo,a gente vê e sofre junto, observa a pessoa no ritual, mas aquele processo é o karma dela, a história dela.
Léo: Como proceder quando estas pessoas mantém uma relação constante com o centro que frequentam?
Dr. Eliseu: Quando estas pessoas mantém uma relação estreita com um centro espiritual, devem ser observadas e acompanhadas. A pessoa não causando nenhum problema para o grupo, ou ainda para a instituição, e mesmo assim sente-se envolvida da sua maneira com a congregação, vale observá-la e eventualmente oferecer apoio apropriado. Encaminhar a pessoa para um suporte além daquele dado pela Ayahuasca é interessante. A observação vai da atitude da pessoa até os seus hábitos de dia a dia, e perceber também se há indícios do uso do crack. Casos de afastamento da droga, em função da Ayahuasca , por uma semana já são vistos como positivos.
Léo: Melhor do que a pessoa estar em um bar por aí bebendo e fazendo bobagem, certo?
Dr. Eliseu: O aspecto da redução de danos é positivo no uso da bebida. É claro que não é o que a gente gostaria de ver, nós desejamos a cura total para a pessoa, que é um percurso que outros percorrem em um grupo espiritualista. Podemos perceber a evolução de casos que observamos e a pessoa tem benefícios para si e diante dos outros, mas tem os casos que não são simples assim. Há de haver jogo de cintura para acompanhar a conduta da pessoa com o grupo , o grau de alteração que ela sofre e assim por diante. A pessoa prefere levar desta forma, mesmo já tendo sido oferecida tratamento específico, então deixa ela no seu ritmo.
Léo: Gostaria que você explicasse sobre este convênio entre o Céu Lua Cheia e o seu consultório de Cotia, e também sobre a importância do envolvimento do paciente com seu processo terapêutico.
Dr. Eliseu: O convênio pensado entre o Lua e o consultório de Cotia está relacionado com o valor que a pessoa deve dar ao seu tratamento, a busca da sua cura. Por mais que ela tenha dificuldade até de reconhecer que ela precisa visitar um médico, é importante estimular essa percepção nela. Deste movimento de associação que já temos experimentado, poderíamos fazer da seguinte forma: vocês me encaminham alguém que supostamente precise de ajuda, e então se ela não puder arcar com o tratamento no consultório, eu a atenderia através do serviço público de Cotia. Posso encaminhar ela pra lá. Desta forma, o paciente se responsabiliza pelo seu tratamento. Caso ela não tenha condições de pagar por isso, ao menos ela se dará ao trabalho de locomover-se até lá, e ver a sua possibilidade diante do tratamento. De qualquer forma, a gente não deixa de acolher a pessoa, mas isso depende do seu querer; não deixaríamos de atender os casos encaminhados por vocês também. E desta forma também evitamos de criar uma cultura paternalista entre a igreja e eu, caso não houvesse os gastos individuais da pessoa envolvidos no seu processo de cura. A pessoa deve perceber que o problema de fato é dela, e não da igreja. Ela foi parar no Daime, e é ótimo que lá temos essa consciência de poder apoiar, mas daí pra frente é com ela. Assim como está dito nos hinos, no daime ninguém convida e ninguém é obrigado… É da responsabilidade de cada um o que cada um vai ver no daime.
Léo: Então encaminhamos a pessoa para o seu consultório, e uma avaliação seria feita.
Dr. Eliseu: A avaliação envolve perceber se o caso necessita de acompanhamento, se há restrição na dose de daime ingerida nas sessões, e se há necessidade de interromper a bebida por um tempo.
Do ponto de vista doutrinário, eu penso que a igreja não deve alimentar um padrão na pessoa que não está correto. Então gostaria de saber como a igreja poderia fazer para monitorar casos assim; fora isso, há os casos que apresentam muitos altos e baixos, e percebemos esse processo na pessoa, mas não temos como por um limite. Então é delicado perceber que a pessoa não se dispõe ao confronto terapêutico, e a igreja acaba pondo isso no seu colo. E eu percebo que uma pessoa deve tomar certas decisões para fazer parte de uma igreja, e se propor a um processo de evolução.
Um caminho eficaz para trabalhar enquanto grupo, visando a evolução e o monitoramento dos casos, é através de uma comissão, que irá sentar com a pessoa e avaliar com ela como está a sua caminhada. E de alguma forma sutil, tentar intimar ela a liderar esse acompanhamento de si própria. É necessário que a pessoa esteja reconhecendo, aceitando e acreditando que precisa de ajuda. Talvez esse “grupo de cura” da igreja, vamos chamar assim, possa apoiar a pessoa a ela se conscientizar da gravidade do seu problema, pois um dos mecanismos de defesa mais comuns é negar ou rejeitar o processo. É como se a pessoa soubesse, mas não soubesse de fato. O dependente grave nega que está doente, além de criar mecanismos de onipotência, onde acredita que tudo pode, e que tudo decide sozinho, mesmo que esteja estagnado há muitos anos. Isso é rico, até mesmo do ponto de vista espiritual da igreja, porque impede que ela fique como um encosto na corrente, pois a pessoa que está estagnada pesa para os demais. Traz os seus encostos pra corrente também, e não se doutrina nunca. E nunca esquecermos da necessidade do distanciamento, pois por mais que amemos alguém, ou nos preocupemos, é impossível combater questões cármicas, ou ainda uma situação intransferível da pessoa. O próprio quadro bipolar por exemplo, as vezes é necessário tomar remédio a vida inteira, mas quando ela manifestou a doença, o processo já vinha acontecendo. Tem muito com baixa auto-estima e sensação de inferioridade. Se pensarmos numa família com pai e mãe alcoólatras, um irmão esquizofrênico, é normal uma pessoa crescer com distúrbios de referência afetiva. Então a pessoa cresce com vários buracos afetivos, complexos grandes e de inferioridade também, e chega um momento em que isto tudo emerge, e desemboca em cadeia. A manifestação do seu inconsciente emerge. E a manifestação é distorcida, não é harmoniosa ou saudável… Então, por mais que a pessoa vá se curando no daime, ela tem muitas vezes questões tão profundas que só com o chá levará muito tempo pra resolver. E a alteração neuroquímica que dispara um quadro bipolar, por exemplo, nem sempre será fácil de controlar ou ainda ter a pretensão de achar que a pessoa não necessitará de remédio para curar-se. Como alguém que toma remédios anti-hipertensivos há trinta anos, por exemplo, e chega num centro O quadro melhora muito, mas a medicação já está fazendo parte da pessoa, então ela mantém uma medicação de base. É uma questão atômica, já há alteração a tanto tempo que a mudança não é rápida.
Léo: A pessoa então se tratando, tomando remédio e Ayahuasca e, qual a possibilidade dela continuar sua vida normalmente, pois percebo que uma coisa é identificar o quadro em que a pessoa se encontra, e outra é poder acompanhar na prática a evolução desta pessoa na sua vida. O que tem acontecido na prática é a formação de grupos de cura em torno da pessoa, os amigos mais próximos por exemplo, e algumas pessoas da diretoria.
Dr. Eliseu: Quanto ao acompanhamento das vidas dessas pessoas fora do centro, a experimentação e o contato entre nós é o melhor caminho. Há a preocupação com as vidas destas pessoas, e de como estão se saindo no dia a dia. Aí o grupo de cura pode também atuar, mantendo a igreja informada de quaisquer alterações. Seria interessante pensar em registrar esses processos.
Ao se perceber que alguma pessoa necessita de mais apoio além daquele prestado na igreja, o caminho é a comunicação, poder estar acompanhando e alertando essa pessoa diante do seu processo.
Casos em que a pessoa esteja patinando muito, e não esteja conseguindo mesmo uma melhora, e está ficando cada vez mais confusa, é necessário fechar a casa para ela. Isso não é para sempre, mesmo um caso grave de esquizofrenia por exemplo, a pessoa irá retornar eventualmente.
Léo: Como uma igreja ou centro pode trabalhar preventivamente diante desses quadros?
Dr. Eliseu: Em nível preventivo, a igreja pode, ao perceber qualquer alteração, tomar a iniciativa da comunicação. No quadro bipolar, observar alterações de engrandecimento, de aceleração, já diminuir a Ayahuasca e encaminhar a pessoa. No caso de algum surto, que seria confusão, paranóia, escuta de vozes, a pessoa se torna esquisita, mesmo na anamnese, já se pode encaminhar o caso para estudo específico.
Léo: Há alguma pergunta chave que possamos aplicar na anamnese para facilitar a identificação de casos assim?
Dr. Eliseu: É interessante perguntar, na anamnese, a questão da paranóia, se a pessoa já se sentiu ameaçada, se ela já se sentiu perseguida.
Léo: Até onde ouvir vozes é um sintoma esquizofrênico e até onde é um dom mediúnico?
Dr. Eliseu: Quando ouvir vozes é um dom mediúnico, aquilo está dentro do trabalho da pessoa, e na maior parte das vezes ela tem consciência de que isto é uma faculdade sua, vem junto com sua miração inclusive. Agora, a pessoa que está alucinando está num quadro de confusão tão complexo, sem falar coisa com coisa, e isto é diferente da pessoa estar em êxtase recebendo orientação da própria força. Então o quadro de cada caso é muito distinto, há de se analisar o estado geral da pessoa. Perceber se a pessoa está esquisita é interessante, pois é inconfundível. Observar o olhar vidrado, alguma característica incomum, ou outro sinal qualquer de que ela está entrando em surto. Esta pessoa deve ser encaminhada assim que possível.
Léo: Penso que podem haver casos de dependentes enrustidos, pessoas que não declaram suas verdades na anamnese e na hora do ritual deixam aflorar as suas questões. Como poderíamos identificar isso?
Dr. Eliseu: No caso de uma pessoa que não cita sua dependência, mas que está em processo de cura, se ela não der nenhuma alteração, não há problemas; se ela apresentar alterações, então o procedimento já foi descrito.
Léo: E quando detectamos que a pessoa é dependente de crack,que um dos piores, há uma forma da igreja fazer algum tipo de acordo com a pessoa, ou ainda trabalhar a questão considerando os limites da igreja diante da situação?
Dr. Eliseu: Nos casos de dependência de crack, o grupo de cura tentaria dar uma assistência para a pessoa. Essa força que o grupo dará para dependentes de álcool, crack ou cocaína, será focada em estimular consciência, apoiar e minimizar o problema. Quando a pessoa está nesse padrão repetitivo, muitas vezes pensamos que a pessoa está num padrão de má vontade para consigo própria e com os outros – não que isso não exista…- mas temos que sempre observar isso como uma doença compulsiva, e aquilo é de fato um grande sofrimento para a pessoa, pois apesar de ela saber que não deve mais fazer aquilo, independente da guerra interna que ela está vivendo, o lado do vício ainda vence. O grupo então pode tentar apoiar, reforçar a boa conduta, mas deve sempre ter muito cuidado para lidar com aquilo sem cobrança, pois se trata de uma doença, e o seu sofrimento de estar atuando contra si mesmo é muito grande. A sua manipulação de se prejudicar e recair contra si mesmo, e causar este sofrimento aos amigos e familiares também, configuram o quadro maior da doença. Há tempos atrás, quando a medicina não havia caminhado neste sentido, estas pessoas viciadas eram vistas como “sem-vergonhas”; a gente pode sempre cair nesse erro. Pode haver uma reação do tipo: então se ele não parar de usar, vamos cortar o seu Daime. Isso, ao meu ver, seria um erro, pois mesmo que ele ainda não tenha se curado do seu vício, ele está utilizando o Daime como remédio. E como temos esperança, devemos aguardar, pois a porta de saída que a Ayahuasca representa, pode vir a funcionar. Falta maturidade, força e determinação no paciente, muitas vezes, para a pessoa dar essa virada na sua vida, acordar e firmar a sua cura. A questão do fardamento nesses casos é delicada mesmo, pois um viciado ainda não está no grau da sua cura; mas no caso do grupo de cura ganhar força, pode-se acompanhar o projeto terapêutico daquela pessoa de tempos em tempos, e perceber então o que ela tem feito além do daime para sua evolução. Esse acompanhamento seria uma das coisas que se faz em direção a cura. Isso tira o grupo da passividade, da conivência de estar observando um irmão doente sem tomar uma atitude, e ter a sensação de que está tocando o barco pra frente. Essa preocupação de apoio é legal, mas tem um limite, então arrastar a pessoa também não adianta. Conhecer a pessoa é essencial, entender seu processo e perceber seu perfil. Isso é interessante para o grupo como um todo. Do ponto de vista preventivo, conhecer as pessoas que chegam também é o melhor caminho.
A postura da igreja diante disso vai depender da natureza do seu comando. É uma questão paradoxal: as pessoas que buscam o Daime ou Ayahuasca estão buscando o auto-conhecimento; alguém que busca uma terapia, também está buscando o auto-conhecimento. Alguns exemplos seriam das pessoas que eram dependentes graves, e se recuperaram da dependência com o Daime, mas aquilo que as levaram a criar a dependência, era um fator emocional grave e profundo – a dependência é apenas a expressão de algo mais sério, a ponta do iceberg que veio a tona. Então, com o Daime ou Ayahuasca a pessoa consegue, muitas vezes, parar de usar o que ela estava usando. Contudo, a pessoa apesar de estar curada, apresenta ainda as características de comportamento que alimentavam a dependência que vivia. A pessoa cria um mecanismo de defesa e pensa, “agora estou curada, então minha cura já veio e eu estou tranquilo”. Só que a cura nunca se fecha, se acaba, fica sempre na construção da cura.
Então, através de mecanismos mentais e barreiras psicológicas de defesa que criamos, mesmo o efeito terapêutico da própria Ayahuasca pode ser barrado. A defesa onipotente de ter uma solução mágica para o próprio problema, ou ainda ignorar o toque dos outros em função de um insight próprio, é a fuga para não aceitar mais ajuda, e também estabelece uma relação direta com a Ayahuasca, onde não pode haver interferências humanas.
Léo: Já ouvi pessoas dizendo, que não vão se curar com remédio e sim com Ayahuasca, fazendo trabalhos de cura sozinhos. Isso já é uma fala defensiva ?
Dr. Eliseu: Exatamente.
Léo: Então a questão da vinda de um novato, por exemplo, pode estar vinculada a sua consciência diante do próprio problema, ao grau de apoio familiar que existe, e ainda ao grupo de amigos existentes na igreja? E esse grupo de cura que consta no Decreto do Mestre vai existir para dar esse apoio. Estas são questões extremamente delicadas, e que tem haver com a direção e comando dos trabalhos, e a natureza da casa em receber pessoas.
Dr. Eliseu: É interessante fomentar estas discussões, para que a filosofia de cada igreja ou centro possa ser sofisticada de acordo com as suas vivências.
Léo: Como o consumo de crack ou outras drogasse usado antes do trabalho pode afetar a pessoa?
Dr. Eliseu: O consumo de crack ou cocaína, momentos antes de tomar Ayahuasca afetará a pessoa, pois ela pode ficar paranóica, agressiva. Normalmente, o dependente não fará isso, pois ele receberá uma ‘chinelada’ triplicada no trabalho. O efeito do crack não é longo, mas se a pessoa usa muita pedra ela pode ficar paranóica por um período maior de tempo. Em um quadro agudo, a Ayahuasca amplificaria o mau estar da pessoa. Na prática, entretanto, não é costumeiro vermos isso, pois a pessoa teme o que poderá acontecer.
Léo: Então a única medicação que não pode ser associada a bebida é a fluoxetina?
Dr. Eliseu: A fluoxetina exatamente, e deve ser evitada três dias, idealmente 7; e os outros anti-depressivos não tem restrição na quantidade de Ayahuasca servida.
Léo: Então qualquer antidepressivo que não contenha fluoxetina pode ser ingerido?
Dr. Eliseu: Isso, tranquilamente. Na prática já vimos e não há problema nenhum.
Léo: A observação de irmãos e irmãs na corrente é o melhor caminho para se perceber esses tipos de alterações do comportamento?
Dr. Eliseu: Tipos esquisitos e isolados devem ser observados. Uma pessoa em estado grave de psicose ou surto, conclui que estão contra ele, ou ainda que está sendo perseguido, e ataca de volta para se defender. O episódio de um cara que matou 5 pessoas no cinema no shopping morumbi há um tempo atrás, estava num surto psicótico, com muita paranóia.
A pessoa que está muito surtada precisa de acompanhamento 24 horas. Está totalmente fora de si. Não tem consciência de nada. Espiritualmente esta pessoa é como uma televisão que não pára em canal nenhum, ou ainda pára em qualquer canal.
Léo: Qual o parâmetro para a internação clínica?
Dr. Eliseu: O parâmetro para internação é a gravidade do quadro. Quando o paciente está ouvindo pouco os outros, e se tornando cada vez mais incontrolável, chega num ponto em que a pessoa perde o chão, e então a internação é uma medida de segurança para a pessoa, para os outros; ou ainda em casos em que a pessoa está sem crítica, e não consegue sequer tomar a medicação por conta própria.
O surto é uma coisa positiva, não é fácil ver isso pois é uma coisa muito dura e talvez até feia, dolorosa e traumática para quem está passando por ele, e para os que estão por perto; mas ele é uma catarse. É o começo de uma cura, um mergulho no inconsciente, o início de um processo latente que estava lá e ninguém via. Só que como ela vai sair desse mergulho é que é a história, ela pode sair ou não sair. E sempre é a manifestação de algo profundo que estava latente, mas que ninguém via.
No caso dos dependentes, a internação tem outros critérios. A quantidade de recaídas, se a pessoa está usando sem critérios a droga e pode estar correndo o risco de convulsão, ou de ter alguma idéia suicida, ou ainda quando a pessoa não consegue se recuperar.
Então quando o dependente cria algo tão repetitivo e rotineiro, só uma internação pode tirá-lo daquilo. Para ela tentar sair desta rotina, só retirando-a do seu dia a dia.
Léo: Existem bons lugares que internariam pessoas com baixo poder aquisitivo?
Dr. Eliseu: Há lugares onde é possível conseguir a internação de graça inclusive, mas o paciente deve estar envolvido com o seu processo. Não é fácil conseguir, mas é possível. É essencial a pessoa desejar sua cura verdadeiramente, inclusive há locais de internação onde a triagem inicial é extremamente rígida, para que chequem o grau de envolvimento do paciente com sua cura. Tem um lugar em Campinas, uma comunidade do padre Aroldo, onde a pessoa para entrar passa por três entrevistas mais ou menos, isso é porque a triagem deseja prever se o paciente está realmente envolvido. O tempo é muito importante para percebermos o grau de evolução do dependente em relação a sua cura. Outra pessoa pode ter uma cura em menos tempo, mas isso varia muito de acordo com a gravidade emocional de cada caso. Só a observação é que traz a resposta de como cada cidadão reage com a cura.
Léo: Na nossa corrente mesmo há muitos irmãos que chegaram que já usaram cocaína e crack e saíram fora, se desvincularam da droga. Muitos casos de cura total. Uma vitória para todos nós. Aliás, há alguma distinção entre a dependência de cocaína e crack?
Dr. Eliseu: O crack é mais destrutivo que a cocaína. As lesões que ele traz são profundas. Raciocínio fino, rapidez de pensamento, capacidade de abstração, as questões mais finas da inteligência são comprometidas, e geralmente são irreversíveis. A compulsão gerada pelo craque é absurda, em relação a cocaína, e também esta compulsão se torna muito poderosa em pouco tempo de uso. A cocaína geralmente se torna compulsiva para o usuário depois de um tempo maior de uso. Vale lembrar que o craque é mais barato, e de maior acesso, então muitas vezes o usuário grave de cocaína pode partir para o seu uso por não encontrar a sua droga. De qualquer modo, a compulsão e a autodestruição são mais comuns no usuário de craque. A pessoa no crack entra em compulsões que duram dias, então isso é muito sério, e o tempo que a pessoa se envolve com o vício é bem maior.
Léo: Qual o índice de cura do lugar onde você trabalha?
Dr. Eliseu: Uns 60%. É baixo relativamente, comparado a outras doenças.
Léo: E o Santo Daime, você diria que tem qual porcentagem de cura na sua percepção?
Dr. Eliseu: Eu acho que é mais, mas é difícil de avaliar pois muita gente não volta, e na realidade deveria ser feito um acompanhamento para obter uma resposta pontual.
Léo: E a epilepsia? E a associação do Gardenal com Ayahuasca?
Dr. Eliseu: Com relação a epilepsia, a Ayahuasca ou Daime faz bem. Não há interação entre a medicação e a Ayahuasca inclusive. Foi feito um estudo no Rio de Janeiro em que fizeram o eletroencefalograma de pessoas durante um ritual, e as ondas elétricas estavam estáveis e bem tranquilas; pressupõe-se que o Daime promove esse estado, de pouca tensão e mais estabilidade. O Daime então ajudaria até a conter uma crise epiléptica. O Daime também repõe a serotonina que uma pessoa reporia durante o sono, então apesar de não ser bom para o epiléptico não dormir, o daime de qualquer forma faz o serviço de repor este químico! Por isso é comum estarmos bem no outro dia do Daime, pois ele repõe a serotonina.
Léo: O problema para o epiléptico é ficar a noite inteira sem dormir, não é mesmo?
Dr. Eliseu: É verdade, mas o dano não é tão sério.
Léo: O sono de qualquer forma parece ser diferente após o Daime, menos pesado…
Dr. Eliseu: Correto, é outro tipo de sono, pela produção da serotonina durante o trabalho.
Léo: Uma última questão sobre o impulso que percebemos nos dependentes químicos em relação a atividades variadas, como funciona isso?
Dr. Eliseu: O dependente se empolga em geral com atividades, mas depois dá pra trás. Esta é a dinâmica deles, como se fosse uma característica bipolar, se empolga e não leva a frente a proposta. Então começar e não terminar coisas é comum entre dependentes. Tem haver também com onipotência e impotência, durante o efeito da droga, a pessoa fica poderosa e depois não consegue segurar nada; como se fosse o quadro bipolar quimicamente induzido.
Léo: Muito Obrigado! Fique com Deus Dr.
Dr. Eliseu: Eu é que agradeço todos vocês do Céu da Lua Cheia.
fonte:
http://www.xamanismo.com.br/
por um_admin | maio 1, 2017 | Ayahuasca
por: Arthur “Planta” Veríssimo
Isolado durante uma semana em uma palafita mágica no coração do Peru, nosso repórter experimental sintoniza através da Ayahuasca uma misteriosa conexão entre a Amazônia e a Índia.
Dez anos atrás, me embrenhei na alta floresta amazônica peruana, no Estado de San Martín, para conhecer a sede do Centro de Reabilitação de Toxicômanos e de Pesquisa de Medicina Tradicional, conhecido como Takiwasi. Na época, fui muito bem recebido pelo fundador, o médico e curandeiro francês Jacques Mabit. Tive a chance de ficar alguns dias. O trabalho efetuado no local mescla o saber milenar da cura com as plantas a modernas pesquisas científicas. Participei de algumas experiências e fiquei instigado a realizar o tratamento mais eficaz e profundo, chamado de “dieta”.
A idéia é ficar de seis dias até meses em completo isolamento na floresta. Quem se habilita? O cidadão passa por uma supervisão com o xamã, que o orienta a tomar doses diárias de uma determinada planta de poder (mágica). O paciente isola-se em um “tambo”, espécie de cabana em que há um kit exíguo de objetos pessoais. Sabão, pasta de dentes, TV, computador, perfumes, edredom, doces e iguarias nem pensar. Isolado mesmo. Óbvio que tudo supervisionado pelo xamã e seus assistentes, que diariamente levam à cabana a comidinha sem sal nem açúcar de cada dia.
Durante uma década o Takiwasi reverberou na minha claudicante memória. No início de 2007, o amigo e médico Ichiro Takahashi, no universo xamanista há anos, me contou de um centro próximo à cidade de Pucallpa onde o enigmático curandeiro Juan Flores desenvolve o trabalho da dieta enfiado dentro de um vulcão em pleno coração da floresta. Era o chamado da selva. Tracei um plano para afinal passar por essa experiência. Um verdadeiro rito de passagem, bem longe da cultura materialista e pasteurizada que domina nossas vidas como uma gosma pegajosa. Acertei as datas e me lancei em busca da pedra filosofal.
Totens de fumaça
Ichiro já conhecia o maestro Juan Flores de outras dietas. Quando entramos na sede de Mayantuyaku, descansamos nossos corpos embalando em redes instaladas na oca principal. Cenário indescritível, ambiente acolhedor: labaredas de vapor espalham-se por toda a cercania, onde a água borbulha a 100 graus – águas termais nas entranhas da selva, exuberantes totens de fumaça chacoalhavam as árvores de mais de 20 metros… estávamos literalmente dentro de um vulcão encantado na floresta amazônica. Os olhos tridimensionais de meu compadre Ichiro me guiavam, enquanto Juan Flores caminhava solenemente ao largo pelo rio. Vestindo os trajes da tradição indígena, o xamã Asháninka se aproximou e nos deu boas-vindas com reverência.
Suavemente, Juan Flores nos orientou sobre nossa dieta. Há centenas de plantas de poder que o xamã conhece. Nos trabalhos são utilizadas frutas, flores, raízes e cascas de árvores. Com seu olhar penetrante, ele nos destinou a dieta da sagrada árvore ayauma, mais conhecida como sala tree. Em quéchua, ayauma significa o Espírito Sem Cabeça. Em jejum pela manhã, tomaríamos uma dose da infusão da casca da árvore, depois outra dose na parte da tarde. Essa árvore cresce próxima a locais onde há água abundante. Do tamanho de um coco, a fruta também é conhecida como cannonball tree (bala de canhão), e seu nome científico é Couropita guianensis; alcança 20 metros de altura. Nativa na floresta amazônica, Malásia, Sri Lanka, Índia e Nepal, a tradição diz que tem o poder de cura e de feitiçaria. Mais tarde atentei a um detalhe muito especial sobre essa planta… acompanhe.
Segundo o xamã, a ordem é permanecer em completa abstinência sexual de 15 a 30 dias depois da dieta, cuja função é limpar profundamente o organismo de substâncias nocivas e entorpecentes, além de estimular visões e dedicar espaço, sem tempo preestabelecido ou preocupações, para introspecção e retomada de contato direto com as forças da natureza. Nossa primeira tarefa em Mayantuyaku seria relaxar e preparar o corpo para a manhã seguinte.
Logo cedo, o assistente do curandeiro nos ofereceu um copo do sumo da yawar panga, uma planta emética (que provoca vômitos) e catártica: a idéia é ativar os centros energéticos. Uma lenta tortura se operou nas minhas entranhas: enquanto ia colocando uma imensidão de impurezas para fora e desbloqueando violentamente meu metabolismo, ectoplasmas borbulhavam pelo ambiente. Então, perdi por completo o controle do que aconteceu com meu aparelho e caí em absoluto abandono. Assumo hoje que não sabia com o que lidava… Depois de algumas horas, renasci pleno de energia, já preparado para me isolar na floresta.
O tempo escorria lentamente. Percorria a beirada do rio onde imensas labaredas de vapor exalavam das águas termais. Os mosquitos, os pássaros e o vento uivando me lançavam em uma transmutação cinematográfica em que se misturavam Apocalipse Now e Predador. À medida que subíamos o rio, a água ficava mais fresca. Quarenta minutos depois, encontrei minha futura casa encaixada no morro onde deveria me encafuar por seis dias. Ali a água estava deliciosamente fria. Ichiro instalou-se na outra extremidade, em um tambo similar, a 100 metros de distância. Um pássaro emitiu um guincho fortíssimo, e de repente me senti observado por todos os lados. Sim, era um intruso ali. Minha morada era uma palafita aberta, sustentada sobre quatro paus, encimada por um telhado de palha seca, com um piso de cascas de árvores comprimidas. Tudo muito rústico: a única sofisticação era um colchão fino com lençol e um mosquiteiro amarelo.
Isolamento
Entrei no útero do mosquiteiro por volta das seis da tarde. Me sentia em alerta geral. Levei uma pequena biblioteca, um caderno de anotações, canetas e lanternas. No primeiro dia permaneci madrugada adentro lendo e fazendo miríades de notas. Segui criteriosamente a dieta prescrita por Juan Flores. A força da beberagem da ayauma incandescia meu espírito e hiperventilava minha consciência… Medinhos e pensamentos turbulentos se dissipavam… Gradualmente ia me adaptando à natureza… Sentia insetos, mosquitos, aranhas e formigas devorando docemente meu corpo… Mas, com o corte abrupto do sal e do açúcar da comida diária, meu cheiro e suor adocicado diminuíram. Os primeiros finais de tarde foram um deus-nos-acuda: falanges de pernilongos grudavam em minhas roupas, cabelo e pescoço – todo o resto estava coberto por roupas e uma grossa camada de repelente. Dentro do útero amarelo, milhares de partículas entravam e saíam do mosquiteiro. O coaxar dos sapos dominava o final da tarde. Escutei um estranho rugido no anoitecer do terceiro dia. Fiquei miudinho, antenado com minhas lanternas.
Era um contínuo aprendizado de meditação e observação. Nada era artificial, não havia TV, internet, cinema, restaurante, balada. Mas era difícil dormir na floresta. Tinha coceiras do couro capilar às cutículas dos dedos. Aproveitava para meditar… Senti-me conduzido para fora da placenta do mosquiteiro cor de laranja, onde tudo era verde, marrom, roxo… Admirava o brilho diáfano azulado-ouro das imensas borboletas, flutuava na meditação por todo o vale vulcânico, observava a ação dos madeireiros e da extração de petróleo… Eu era fora e dentro. Voava e penetrava em universos desconhecidos… Visitei o mundo subaquático onde o grande mestre Sumirana me recebeu com Yakumama (o espírito da serpente de água) e um farnel de especiarias. Muraya, o curandeiro, foi o anfitrião em minha descida ao sinistro mundo infraterreno. Voltei à terra sentindo o intenso odor dos sedimentos da floresta. Abri os olhos e súbito minha consciência notou o tagarelar incessante das reclamações da minha mente estimulada pela instabilidade do meu ego. Imerso no oceano verde, deixei fluir… o bla-bla-blá mental se dissolvia e um néctar se derramava pelas copas das árvores.
Esse estado místico faz parte do dia-a-dia selvagem… vacilou, você pode cair num abismo, ser picado por uma cobra ou virar banquete de insetos… eu literalmente desencanei de voltar à cidade… Pratiquei yoga asthanga, pranayanas, caminhadas… quando vi, já estava no quinto dia de isolamento. Por todos os lados encontrava pistas para o meu florescimento que os espíritos tutelares e a sagrada natureza colocavam com sinais, sombras, cantos, movimentos e ruídos. As múltiplas formas da selva penetravam minha consciência, revelando uma lógica desconhecida. Confusas impressões da minha existência na Babilônia transformaram-se em adubo. Captava o sabor das plantas, o perfume das flores, o frescor e calor das águas. Era como se toda a vida da floresta circulasse pelas minhas tripas.
Questionava-me. Qual a finalidade? Por que vim parar aqui? Reportagem? Experiência vital? As dúvidas pululavam por todos os poros enquanto eu vivia intensamente o cotidiano dos indígenas, suportando todas as condições contraditórias da vida urbana e seus comodismos ainda entranhados em mim. Para superar tédio, preguiça e outros males contemporâneos, observava que não era a alma que sofria de ócio, e sim a maldita mente entorpecida de egos carcomidos que haviam sido implantados dentro de mim pela sociedade. Arranquei as máscaras, viseiras, fantasias e identidades postiças que impregnavam minha essência. A maior dificuldade que tinha de superar na floresta não era o aborrecimento de me sentir mal, e sim de me sentir culpado por não fazer nada.
Os habitantes da selva não se inquietam no ócio. A floresta nos faz entender que nada do que é vomitado pelos veículos de comunicação é indispensável, pois os totens culturais estão a milhares de quilômetros. A vidinha que gira em torno da moda, do último restaurante, de vernissages e salões de beleza não tem nenhum valor ali. A floresta ensina que expectativas de sucesso, imortalidade e grana são ilusões. Depois de seis dias em estado de planta, estava pronto para a grande experiência de tomar a ayahuasca.
Um drinque no paraíso
De volta para a sede de Mayantuyaku, aguardei o dia inteiro em silêncio. O ritual seria realizado às nove da noite. As plantas são divididas em três categorias: purgativas (yawar panga, tabaco), curativas (mucura, unha-de-gato) e mestras (ayahuasca, ayahuma, toe, chiric sanango, wairacaspi lupuna, bobinzana etc.). A ayahuasca (Banisteriopsis caapi) é um cipó que os médicos vegetalistas definem como a planta mestra por excelência. Combinada com a chacrona (Psychotria viridis), compõe o supra-sumo que é a ayahuasca.
O xamã caminhava pela penumbra, aproximou-se e sentou-se ao meu lado. Sua silhueta emitia concentração e compaixão. Iniciou o ritual “soplando” seus objetos de poder e a ayahuasca. O ato de soplar é uma prática estranha: o curandeiro sorve tragadas fortes do tabaco (carpacho) da floresta e emite fumaçadas com seus ícaros (cantos sagrados) cerimoniais. O propósito da soplada é limpar o ambiente dos espíritos nefastos e fortalecer a concentração chamando ao trabalho os espíritos tutelares, consagrando a ayahuasca e invocando a proteção dos deuses e animais que ali transitam. Recebi o copo com a substância e percebi no breu que o líquido tem a cor e até a espuma de uma xícara de café. Ao primeiro gole, senti o gosto profundamente amargo do líquido, uma mistura de material vegetal fermentado.
O tempo passava… Ichiro, Juan Flores e seus assistentes equilibravam a sessão cantando e tocando pequenos instrumentos… depois de uma hora, a planta começou a dialogar e ensinar. Alguns vomitavam… Fui ficando mais quieto, relaxado, completamente envolvido com a música, um canto penetrante cujo volume foi crescendo… Juan Flores balançava um feixe de galhos com folhas, criando vibrações de forças invisíveis. O rugido do vômito dos participantes combinado a lamentos, espasmos estomacais e gemidos ganhava uma bizarra qualidade musical… Para os recheados de toxinas ou doentes, o processo é desagradável, prolongado. A Planta prolonga o sofrimento de alguns, obrigando-os a tomar consciência da sua situação. Finalmente saí do processo de purgação e fui arrastado a mirações de sabedoria…
Percebi os espíritos da floresta, viajei do mundo subatômico ao macrocosmo… Conectei o guardião da planta ayauma, o rei dos espíritos da selva, o eminente Sumiruna, e sob a forma de uma imensa anaconda ouvi seu silvo, limpando como um tsunami meu corpo e meu espírito… Juan Flores se aproximou me ofertando um copo de água fresca. Mais de sete horas de viagens fascinantes depois, a onda energética dissipava-se… Depois dessa fortíssima experiência, refleti que podemos escolher explorar essas dimensões estranhas ou esperar que a destruição da Terra torne irrelevante qualquer pesquisa: ou nos distanciamos ou buscamos a essência.
Voltando a São Paulo, mergulhei em uma pesquisa profunda via internet e descobri que a poderosa ayauma (sala tree), além de árvore tradicional no universo xamânico amazônico, é planta sagrada no Nepal, terra de Sidharta Gautama, o Buda. Nos textos budistas, a árvore é mencionada por sua clarividência. Em um antigo livro de gravuras narrando a vida de Buda vi uma imagem do pequeno príncipe Sidharta com sua mãe, Mahamaya, caminhando sobre flores no jardim do palácio de Lumbini: precisamente as flores da ayauma. Amazônia, Índia… tudo está conectado.
Ayahuasca visions
No calor infernal da extremamente úmida Pucallpa as pistas dessa conexão já eram traçadas antes mesmo de eu me embrenhar na floresta. O Estado de Ucayali é colado ao Acre, bem perto de Xapuri, cidade onde minha adorável mãe nasceu. Volta às minhas origens e essência no DNA da floresta.
Durante os dois longos dias flanei pela cidade e, com Ichiro, aproveitei para fazer uma visita ao fascinante pintor Pablo Amaringo. Seus quadros são a quintessência das visões provocadas pela ayahuasca e suas experiências como xamã. O trabalho de Amaringo é conhecido mundialmente pelos connaisseurs da contracultura. Século passado, o etnobotânico e guru psicodélico Terence McKenna, seu irmão Denis e o antropólogo Luis Eduardo Luna divulgaram a obra de Amaringo.
A casa do mestre Amaringo fica ao lado da escola de pintura Usko Ayar, onde Pablo ministra aulas para crianças e adultos. Conversamos horas sobre o universo vegetalista e ganhei o estonteante livro Ayahuasca Visions, em que Amaringo e Luna esclarecem os mistérios das pinturas visionárias.
Naqueles dias pré-isolamento, as pinturas se misturaram à minha ansiedade. Plantas mágicas, dieta, isolamento, criaturas da floresta e do mundo subaquático permeavam sonhos inexplicáveis cheios de insetos, dieta, feitiçaria, serpentes e animais obscuros, e encharcava os lençóis com um suor verde, esquisito.
A conexão com as plantas da floresta é reveladora. Tira máscaras, deixa as águas menos turvas, traz à realidade. Hoje todo mundo quer participar de algum curso acelerado de esoterismo, yoga, magia e filosofia, esperando que o guru forneça atalhos para o graal da sabedoria. A pasteurizada civilização moderna nos obriga a virar uma engrenagem minúscula desse grande corpo materialista, senão o castelinho de areia desmorona. Na maioria das vezes as enfermidades só aparecem para a gente reconhecer que nossa vitalidade não é o que aparenta. Com as plantas, aprendemos: o ideal é sentir-se bem em qualquer lugar…
fonte: Revista Trip
A revista ao que parece retirou o artigo de seu site, o link antigo é este:
http://revistatrip.uol.com.br//159/arthur/home.htm
por um_admin | maio 1, 2017 | Ayahuasca, Home
O artigo traduzido a seguir trata de experiências com DMT, que costuma ser apontada como a substância alucinógena mais poderosa que existe. Também aborda a relação de seus efeitos com o budismo.
Foi publicado originalmente na edição nº 6 de 1996 (págs. 81 a 88) da revista americana Tricycle, que trata exclusivamente de budismo. O original pode ser lido neste link.
O autor é Rick Strassman (imagem), psiquiatra famoso pelo livro DMT: The Spirit Molecule (imagem), obra fascinante, cujos comentários vou reservar para outro texto.
DMT é uma molécula relativamente comum no cérebro e no corpo humano (além de diversos animais e plantas). Seu efeito é ativado somente em circunstâncias especiais. Não há efeito porque algumas enzimas quebram a molécula antes de ela interagir com o cérebro. O DMT é parte fundamental da ayahuasca, bebida sacramental de efeito enteógeno. Além disso, há no chá componentes inibidores da enzima que anula o DMT. Assim, eles “ativam” e prolongam o efeito do DMT, além de conterem seus próprios efeitos.
O artigo a seguir foi um dos estopins para irritar a comunidade budista que Strassman pertencia já há décadas. Essa comunidade chegou a ordenar que o pesquisador interrompesse seu trabalho e que membros não freqüentassem sua casa. Somado a outros fatores, a pesquisa acabou mesmo suspensa.
O médico defende um troca aberta entre as comunidades budista e “psicodélica”. Pessoalmente, acho impossível e inviável que qualquer comunidade budista “oficial” integre componentes químicos psicodélicos em suas práticas. Já o contrário (budismo beneficiando grupos que usam enteógenos) é tão possível que já acontece há um certo tempo no Brasil (principalmente, entre grupos huasqueiros independentes). Nos EUA, isso vem desde a era hippie (vide A Experiência Psicodélica).
Acompanhamento para sessões: Dharma & Pesquisa sobre DMT
Rick J. Strassman, M.D.
Rick Strassman, M.D,. é professor associado clínico de psiquiatria da universidade de British Columbia. Ele está trabalhando em um livro (DMT, The Spirit Molecule) descrevendo sua pesquisa sobre uma droga psicodélica.
Janeiro de 1991, 23 minutos após eu injetar uma dose elevada de DMT (N,N-dimetiltriptamina) na veia do braço de Elena. Elena é uma psicoterapeuta de 42 anos, com experiência pessoal extensiva com drogas psicodélicas. O DMT é um psicodélico poderoso, de curta duração, que existe naturalmente nos fluídos do corpo humano. Também é encontrado em muitas plantas. Ela já leu textos budistas, mas pratica meditação taoísta.
Ela repousa em uma cama no quinto andar do Centro de Pesquisa Clínica do hospital da Universidade do Novo México. O tubo de plástico claro que dá acesso a sua veia está pendurado na cama. O prendedor de um aparelho de medir pressão está preso com alguma folga em seu braço. Os tubos estão ligados a traseira de um monitor que pisca.
30 segundos após a injeção, ela perde consciência da sala onde estamos. Além de mim, o marido de Elena, que acabou de passar por uma sessão parecida, e nossa enfermeira de pesquisa estão sentados quietos ao seu lado. Conheço por relatos de voluntários anteriores que os efeitos de pico de DMT intravenal ocorrem entre dois e três minutos após a injeção e que ela não conseguirá se comunicar por pelo menos 15 minutos, quando a maioria dos efeitos terão se dissolvido. Com os olhos fechados, ela começa a soltar gargalhadas, às vezes de maneira gritante, e seu rosto fica vermelho. “Bem, encontrei um buda vivo! Oh, Deus! Estou permanecendo aqui. Não quero perder isso. Quero manter meus olhos fechados para que isso se imprima [na minha mente]. Apenas porque é possível!”
Elena se sentiu ótima na semana seguinte. “A vida está bem diferente. Um buda agora está sempre na esquina da minha consciência”, diz Elena. “Tudo em que tenho trabalhado espiritualmente nos últimos anos virou uma certeza. Ganchos de esquerda do mundo cotidiano continuam a vir e me acertar. Mas a solidez da experiência me ancora, permite que eu lide com tudo isso. O tempo parou no pico da experiência; agora o tempo do dia-a-dia diminui a marcha. O terceiro estágio, aquele de voltar do pico foi o mais importante. Se tivesse aberto meus olhos muito cedo, não teria podido me integrar tanto à experiência”.
Dois anos depois, ela raramente consome psicodélicos. Sua mais importante lembrança da sessão de DMT foi a “claridez e pureza desse remédio”. A mais negativa: “A absoluta falta de caráter sagrado no contexto”. Muitas das mudanças em sua vida, particularmente uma profunda mudança de “pensar” para “sentir”, foi “apoiada” pela sessão de DMT. Mas já estava a caminho antes disso e continuou depois.
A experiência de Elena, repetida por 10% a 20% dos voluntários em nossos testes, representam os resultados mais gratificantes e intrigantes de nosso trabalho no Novo México. Meu próprio interesse no budismo e nos psicodélicos se encontraram da melhor maneira na “experiência de iluminação” induzida por DMT.
O nosso foi o primeiro projeto em 20 anos a obter financiamento do governo dos EUA para um estudo com drogas psicodélicas em humanos. Essa pesquisa científica foi o resultado de 18 anos de treinamento e experiência médica e psiquiátrica. Também tenho praticado o Zen budismo por mais de 20 anos. E foi na molécula de DMT que esses dois interesses finalmente se fundiram.
Há motivos importantes para se estudar drogas psicodélicas em humanos. O uso de LSD (”ácido”) e “cogumelos mágicos” (que contém psilocibina) continuam a se elevar. Entender o que (e como) os psicodélicos fazem com as funções cerebrais vai ajudar a tratar reações negativas de curta ou longa duração. Devido ao fato que há alguma similaridade entre efeitos de drogas psicodélicas e a esquizofrenia, a pesquisa pode também podem jogar nova luz sobre essa devastadora doença mental.
Há outras razões para se estudar drogas psicodélicas. Embora menos “médicas”, elas se relacionam com saúde e bem-estar. A principal entre elas é a semelhança entre estados psicodélicos e religiosos. Fiquei impressionado com as descrições “psicodélicas” de práticas de meditação intensiva em algumas tradições budistas. Devido ao fato que essas escrituras não mencionam drogas e que os estados parecem similares aos obtidos com uso de drogas psicodélicas, suspeitei que pode haver um molécula psicodélica natural no cérebro, ativada por meditação profunda.
Fui levado à glândula pineal como uma possível fonte de componentes psicodélicos produzidos sob certos estados mentais e físicos anormais. Essas condições incluiriam limiar da morte, nascimento, febre elevada, meditação prolongada, jejum e privação sensorial. Esse minúsculo órgão — o “assento da alma” ou “terceiro olho” para os antigos — deve produzir DMT ou substâncias similares com simples alterações químicas em um bem conhecido hormônio pineal, a melatonina, ou em um importante componente químico cerebral, a serotonina. Talvez seja o DMT, liberado pela pineal, que abre o olho da mente para realidades espirituais ou não-físicas.
A glândula pineal também exercia uma fascinação em mim porque ela se torna visível pela primeira vez no feto humano 49 dias depois da concepção [geração do embrião]. Essa também é a ocasião quando o sexo do feto se torna claramente distinguível. 49 dias, segundo diversos textos budistas, é quanto tempo leva para a força vital de alguém que morreu entrar na próxima encarnação. Talvez a força vital de um humano entre no feto após 49 dias através da pineal. E ela deve deixar o corpo, na morte, pela pineal. Essa ida e vinda deve ser acompanhada pela liberação de DMT pela pineal, mediando a consciência desses fenômenos incríveis.
Junto com o quebra-cabeça científico apresentado por essas similaridades entre estados místicos e psicodélicos, havia questões de cura que também me atraíram para ambos. O sentimento de que há “algo maior” que resulta de grandes episódios psicodélicos me levou a pensar que psicodélicos podem ajudar pessoas com problemas psicológicos, físicos e espirituais. Me pareceu crucial evitar a limitação que, com freqüência, estraga argumentos sobre a utilidade ou perigo das drogas, mantendo um ponto de vista mais amplo. Meu ponto de vista global que começou a emergir era como um tripé de pernas biológicas (cérebro), psicanalíticas (psicologia individual) e de religiosidade oriental (consciência e espiritualidade). As primeiras duas foram importantes em minha decisão de cursar medicina. A terceira me levou profundamente ao budismo.
Desapontado pela falta de espiritualidade do treinamento médico, me ausentei por anos da faculdade e explorei o Zen em uma série de retiros. A ênfase do Zen na experiência direta, seu método equilibrado para lidar com todos os fenômenos que surgem na meditação, e a importância da iluminação, todos combinavam comigo e com meu ideal de tradição religiosa.
Durante os quatro anos de minha especialização psiquiátrica, ajudei a fundar e manter um grupo de meditação afiliado com minha duradoura comunidade Zen. Fui ordenado budista leigo no meio dos anos 80. Foi no mesmo ano que recebi treinamento em psicofarmacologia clínica, aprendendo a ministrar drogas psicoativas em voluntários humanos em estudos científicos controlados.
A forma de nossa pesquisa no Novo México foi a biomédica tradicional, monitorando efeitos de diversas doses de DMT na pressão sanguínea, temperatura, tamanho da pupila e níveis no sangue de diversos componentes químicos que indicam atividade cerebral. Recrutamos usuários experientes com alucinógenos que eram adequados médica e psicologicamente. Isso porque eles poderiam reportar melhor sobre suas experiências e teriam menos probabilidade de entrar em pânico ou sofrer efeitos colaterais duradouros, em relação a usuários inexperientes. Os voluntários acreditavam na habilidade de psicodélicos ajudarem no “trabalho interior” e se ofereceram, pelo menos em parte, para usar o DMT em seu crescimento pessoal.
Havia um aspecto espiritual na experiência com DMT? E, se sim, isso seria útil por ele mesmo? Essa era uma das minhas razões principais para nosso programa de pesquisa com DMT.
A supervisão de sessões é chamada de “sitting”. Acredita-se que o termo vem da necessidade de uma “baby-sitter” para pessoas em estados, por vezes, altamente dependentes e vulneráveis. Mas, em nossas mentes, a prática budista foi uma fonte tão relevante quanto, para o termo. Nossa enfermeira e eu fizemos o máximo para praticar meditação na companhia dos voluntários: conscientes da respiração, em estado alerta, olhos abertos, prontos para agir, mantendo uma atitude “brilhante” e saindo do caminho das experiências dos voluntários.
Esse método é muito similar ao que Freud chamou de “atenção suspensa uniforme”, executada por um psicanalista treinado que fornece suporte através de uma postura, na maior parte, silenciosa mas presente. Experimentei esse tipo de “escuta” e contemplação como algo similar à meditação Zen.
Outro exemplo de como os psicodélicos e a meditação budista convergem foi o desenvolvimento de um novo questionário para medir estados de consciência. Os questionários anteriores para medir efeitos psicodélicos não eram ideais por muitos motivos. Alguns assumiam que psicodélicos causam nada mais que psicose, enfatizando experiências desagradáveis. Outras escalas foram desenvolvidas para voluntários que não sabiam quais drogas estavam consumindo ou quais efeitos surgiriam.
Sempre apreciei a visão budista de dividir a mente em cinco skandas (pilhas ou agregados) que, no todo, dão a impressão de um ego pessoal que experimenta. Esses são os familiares conceitos de “forma”, “sentimento”, “percepção”, “consciência” e “volição”. Pesquisei em diversos guias para a literatura do Abhidharma, o “cânone psicológico” budista, com mais de mil anos de uso no monitoramento do progresso da meditação. Pareceu que uma escala de avaliação baseada nos skandas poderia dar uma base excelente para uma descrição neutra e compreensiva de estados psicodélicos.
Divulguei que estava interessado em falar com pessoas que já experimentaram DMT. Logo, o telefone estava tocando com pessoas querendo descrever suas experiências. A maioria das 19 pessoas eram do Novo México e da Costa Leste, e quase todos estavam envolvidos em alguma disciplina terapêutica ou religiosa. Todos tinham boa educação, articulação e estavam impressionados com a habilidade do DMT de abrir a porta para estados altamente incomuns e não-materiais, maior do que psicodélicos de longa duração como psilocibina ou LSD.
Após completar essas entrevistas, decidi adicionar um sexto skanda ao questionário, chamado “intensidade”, que ajudou a quantificar a natureza da experiência.
Demos e analisamos esse novo questionário, chamado de Escala de Avaliação Alucinógena (Hallucinogenic Rating Scale – HRS), quase 400 vezes para mais de 50 pessoas em quatro anos. É interessante notar que o grupo de questões do método skanda trouxeram resultados mais sensíveis no trabalho com DMT do que um grande número de dados biológicos, como pressão sanguínea, temperatura e níveis químicos no sangue.
Além de determinar esse estilo de “acompanhamento” (sitting) e de medir reações, o budismo ajudou a tirar sentido das experiências que as pessoas tiveram em nosso ambiente relativamente esparso mas pronto para qualquer coisa que pudesse acontecer. Para muitos voluntários, mesmo aqueles com uso anterior de DMT, a primeira dose elevada de DMT intravenal foi como uma experiência de quase morte, que costuma ser fortemente relacionada com experiências místicas benéficas. Muitos se convenceram que estavam mortos ou morrendo. Muitos tiveram encontros com deidades, espíritos, anjos, criaturas inimagináveis e a fonte de toda a existência. Praticamente todos perderam contato com seus corpos em algum ponto. O caso de Elena é um bom exemplo de uma experiência de iluminação — soando idêntico aos relatos da tradição de meditação budista — proporcionada por uma dose alta de DMT.
Por um lado, a perspectiva budista pode tratar todas essas experiências com equanimidade. O fato de que, no budismo, se experimenta mesmo reinos não-materiais fornece uma base firme para aceitar e trabalhar com essas experiências. Ele também elimina o julgamento de que reinos não materiais são melhores (ou piores) que os materiais — uma tendência de algumas religiões New Age. A experiência de ver e falar com criaturas do tipo deva no transe de DMT é apenas isso: ver e falar com outros seres. Nem melhor, nem pior e nem mais ou menos confiável, do que qualquer um ou qualquer outra coisa.
Por outro lado, como tratar o voluntário que teve uma iluminação induzida por drogas? Certificá-lo(a) como iluminado? Explicar através da farmacologia o impacto meteórico da experiência?
Foi confuso. Primeiro, pareceu que uma dose alta de DMT era, de fato, transformadora. Com o passar do tempo, contudo, checando nossos voluntários por meses e anos, minha perspectiva de fato mudou. Enquanto alguns, como Elena, tiveram benefícios profundos de sua participação, um pequeno número de voluntários tiveram reações negativas e assustadoras, que exigiram algum cuidado depois.
Em outros, efeitos adversos mais sutis também se revelaram (como pode acontecer na prática budista) na forma de orgulho elevado — ou seja, uma divisão do mundo entre os que tem e os que não tem “entendimento”. Além disso, a “resolução” de problemas durante o estado alterado — particularmente comum com uma dose psicodélica alta — cuja solução não era colocada em prática, me pareceu pior do que nem tentar trabalhar determinada questão.
Conclui que não há nada inerente em psicodélicos que possua um efeito benéfico. Também não são farmacologicamente perigosos por eles mesmos. A natureza e os resultados da experiência são determinados por uma complexa combinação da farmacologia da droga, o estado do voluntário no momento do consumo e a relação entre o indivíduo e o ambiente físico e psicológico: droga, condição e ambiente.
Os voluntários que se beneficiaram mais das sessões de DMT foram os que provavelmente se beneficiariam mais de qualquer “viagem” — com ou sem drogas. Os que se beneficiaram menos foram aqueles que mais se sentiam invadidos pelo desconhecido, pelo unusual. As sessões mais difíceis aconteceram pela combinação de dois fatores. O primeiro foi a indisposição do voluntário para desistir do diálogo interno e consciência do corpo. A segunda, a incerteza ou relações confusas entre os voluntários e as pessoas presentes na sala. Assim, os efeitos “religiosos”, “adversos” ou “banais” dependeram mais da pessoa ou do que ela ou aqueles na sala trouxeram para a sessão, do que qualquer característica inerente da droga.
Assim, o problema de depender de uma ou diversas experiências psicodélicas transformadoras como prática é que não há uma estrutura que lide adequadamente com a vida cotidiana no intervalo entre as sessões. A introdução no ocidente de igrejas baseadas em plantas alucinógenas amazônicas, com seu conjunto de códigos morais e rituais, podem fornecer um novo modelo combinando práticas religiosas e psicodélicas.
No último ano de meu trabalho, um novo componente comum pessoal entre budismo e psicodélicos apareceu. Isso envolveu o que pode ser descrito como uma briga entre minha comunidade Zen e eu. Por anos, recebi apoio — pelo menos, implícito — de diversos membros da comunidade Zen para seguir com minha pesquisas. Estes eram praticantes antigos com suas próprias experiências psicodélicas anteriores. No ano passado, descrevi meu trabalho para membros da comunidade, ingênuos em relação a psicodélicos, que o condenaram fortemente. Praticantes antes a favor pareceram estar sendo pressionados para retirar qualquer apoio.
Essa preocupação estava especificamente direcionada a dois aspectos de nossa pesquisa. Um deles era uma futura psicoterapia com psicodélicos para doentes terminais, pesquisa que demonstrou potencial impressionante nos anos 60. Ou seja, em pacientes com dificuldades no processo de morte, uma sessão com uma alta dose psicodélica poderia atenuar o sofrimento e desespero associado com sua doença terminal.
A outra área de preocupação era o potencial para efeitos adversos, tanto os óbvios quanto os mais sutis, já previamente descritos.
Foram dados argumentos empíricos e com base nas escrituras para essa reprovação, além das experiências dos próprios membros da comunidade. Contudo, me pareceu que a principal preocupação era que seria muito desfavorável para eles, como uma comunidade budista, ter associado de alguma maneira o budismo com o uso de drogas. Pareceu que os praticantes que tiveram experiências psicodélicas (e descobriram que elas estimularam seu interesse pela vida meditativa) tiveram que dar o aval àqueles que nunca tiveram.
O que experimentei como um atrito entre disciplinas não é incomum no mundo e, talvez, na comunidade budista em particular. A questão se resume a: é considerado “budista” dar, consumir ou se ocupar com psicodélicos como ferramentas espirituais?
Vários projetos de pesquisa estão sendo planejados nos EUA, usando psicodélicos para tratar o vício em drogas — condição de alto índice de mortalidade, caso não seja tratada. Entendo os preceitos budistas que toleram o uso de “intoxicantes” por motivos médicos (por exemplo, cocaína para anestesia local, narcóticos para controle da dor). É importante notar se um budista sofre ou não tratamento igual por dar ou consumir um “intoxicante” psicodélico para o tratamento de uma condição médica. O complicador nesse caso é que efeitos psicológicos/espirituais de uma sessão adequadamente preparada e supervisionada podem revelar efeitos de cura.
Em uma área comum final, acredito que há modos em que o budismo e a comunidade psicodélica podem se beneficiar de uma aberta e franca troca de idéias, práticas e éticas. Para a comunidade psicodélica, a ética, o estruturamento disciplinado da vida, a experiência e as relações fornecidas por anos de comunhão budista têm muito a oferecer. Essa bem desenvolvida tradição poderia injetar significado e consistência em experiências psicodélicas isoladas, fragmentadas, pobremente integradas, sem o amor e compaixão necessários e praticados diariamente. Sem isso, essas experiências acabariam “fritas” num excesso de narcisismo e auto-indulgência.
Embora boas experiências sejam possíveis sem uma tradição de meditação budista, elas são menos prováveis sem a checagem e o balanceamento de uma comunidade dinâmica de praticantes.
Além disso, praticantes budistas dedicados com pouco sucesso em suas meditações, mas bem desenvolvidos em aspectos morais e intelectuais, poderiam se beneficiar de uma sessão psicodélica cuidadosamente agendada, preparada e supervisionada, para acelerar sua prática. Psicodélicos fornecem uma visão que — para alguém inclinado — pode inspirar o trabalho duro necessário para fazer dessa visão uma realidade viva.
por um_admin | maio 1, 2017 | Ayahuasca
por: Ricardo Kelmer
Crônica sobre o livro “The White Hole in Time” (Peter Russel), que tem um filme de mesmo nome que mostra as raízes da crise humana… na verdade uma crise de consciência. Texto muito bom, que ganha aqui mais um canal pra que a informação chegue a mais pessoas.
A cada dia mais e mais pesquisadores ligados ao estudo da consciência, antropologia, psicologia e botânica se debruçam sobre uma possibilidade no mínimo intrigante e polêmica. É provável que as plantas psicoativas (que induzem a mente a funcionar em estados especiais) possam ter contribuído significativamente para o surgimento da autoconsciência, fator decisivo que proporcionou aos nossos ancestrais, num determinado ponto da evolução, as condições para sobreviver e gerar a incrível espécie a qual pertencemos: o Homo sapiens.
Admitir tal hipótese é mexer num vespeiro. Muita gente se indagará: “Quer dizer que nós humanos só existimos porque um bando de macacos comeram umas plantinhas e ficaram doidões?” Imagino os mais religiosos: “Era só o que faltava! Deixa só Deus escutar isso!” Pois infelizmente para muita gente, e até para alguns deuses, essa hipótese vem sendo estudada com seriedade e encontra ressonância positiva no meio científico.
Quem já passou por uma experiência com as tais “plantas sagradas”, como a Ayahuasca, o Peiote e a Jurema, sabe perfeitamente do imenso poder que elas guardam. E sabe também que elas não se prestam a um consumo recreativo, exatamente porque costumam tocar muito fundo em nosso interior, abalando nossa compreensão da realidade e de nós mesmos e nos fazendo emergir da experiência profundamente transformados. Xamãs e pajés do mundo inteiro as utilizam há milhares de anos em contextos religiosos e terapêuticos. Atualmente médicos e pesquisadores de vários países estão unindo medicina acadêmica com antiquíssimas práticas xamânicas que envolvem o uso de plantas psicoativas e, com essa curiosa união, vêm obtendo resultados animadores na cura de muitas doenças como a dependência química.
Atualmente no Brasil proliferam-se seitas e dissidências de seitas que em seus rituais utilizam chás à base dessas plantas, chamando a atenção de estudiosos para o emergente fenômeno. Toma-se o chá para entrar num estado de consciência não ordinário, onde é possível viver experiências sensoriais e cognitivas as mais diversas. Há quem encontre pessoas vivas ou mortas, santos, entidades animais ou espíritos de plantas. Há os que experimentam capacidades psíquicas incomuns ou vivenciam uma intensa sensação de união com a Natureza e tudo que existe. Há quem passe por profundas experiências de auto-investigação psicológica como também de autocura ou seja tocado por revelações importantes que podem mudar toda uma vida. Pode não acontecer nada mas também pode ser prazeroso ou doloroso. Pode ser infernal ou divino mas será sempre construtivo. Depende de cada um e de seu momento. Os religiosos radicais, sempre obcecados, diriam que é coisa do demônio. Alguns psicólogos talvez usassem o termo “terapia de choque”. Talvez nada mais seja que um providencial reencontro consigo mesmo e com sua verdade mais íntima.
Por que a crescente procura atual pelas plantas de poder dos xamãs? Por qual razão tantas pessoas ousam se submeter a uma experiência incerta, largando a segurança de sua mente cotidiana e desafiando o desconhecido de si mesmo? Minha impressão é que isso tudo talvez signifique, em última instância, uma forma de religação à Natureza. Religação sim, porque, na verdade, nós também fazemos parte da Natureza. O que houve é que, infelizmente, passamos a nos ver separados dela e com isso nos distanciamos demais da sabedoria natural do planeta e agora, perdidos num mundo cada vez mais caótico e insano, buscamos com avidez crenças e experiências que nos reconectem ao sentido maior da vida e às nossas verdades mais profundas. Entendo isso como um anseio natural e legítimo de uma espécie adoecida: o anseio de cura, liberdade, totalidade e harmonia com a Mãe Terra.
O que liberta também escraviza.
Por minha própria experiência, sei que plantas psicoativas podem ser bastante úteis porque nos fazem olhar para dentro, nos reconectam às leis naturais e ao sagrado de nossas vidas, nos lembram de nosso potencial para a autocura e ajudam a nos libertarmos de medos, culpas e bloqueios. Não há como não se transformar após um profundo encontro consigo mesmo. É por isso que quem passa por tais experiências xamânicas engrossa a legião dos que entendem o mais importante: somente a profunda mudança interior de cada um é que fará finalmente com que o mundo mude para melhor.
Este talvez seja o convite que as plantas sagradas fazem neste momento à nossa espécie: quanto mais pessoas se religarem à sua verdade mais íntima, mais próxima a humanidade estará de seu ponto de equilíbrio. Por outro lado, sei também que a espécie humana está doente e que, na busca angustiada pela cura, é capaz de exagerar no remédio. Por isso, nessa urgente busca por valores espirituais, é preciso, acima de tudo, priorizar a liberdade e atentar para o risco sempre presente de cairmos escravos exatamente daquilo que um dia elegemos como libertador. As plantas sagradas não ficam de fora desse perigo. Tenho amigos que fazem parte de seitas que utilizam tais plantas e certamente discordarão. Respeito o que eles pensam e admiro sua busca pessoal. Porém, como tudo o mais que existe, as plantas sagradas também possuem dois lados. Se um lado liberta, o outro está lá prontinho para escravizar caso você não se mantenha atento, equilibrado e sem apegos excessivos.
Religiões, seitas e gurus funcionam muito bem para os que necessitam de regras ou se sentem mais seguros pertencendo a um certo grupo. Eles estão em seu caminho e isso deve ser respeitado. Mas há pessoas que conseguem beber em todos os ensinamentos e usufruir do melhor que eles lhes oferecem sem ter de se enquadrar em nenhum específico. É um caminho mais solitário, evidente, e exige um contínuo “estar aberto” – mas que exatamente por isso recompensa quem o trilha com a liberdade que nenhum outro caminho pode oferecer. As regras da seita ou as palavras do guru podem até iluminar durante um tempo, sim, mas até mesmo essa luz pode cegar para os horizontes seguintes da jornada. O principal ensinamento das plantas de poder (assim como deveria ser o de todo guru) é este: devemos abandonar todas as muletas e aprender a caminhar por nós mesmos.
O atual processo coletivo de reconectar-se aos valores da Natureza através das plantas psicoativas não significa uma espécie de retrocesso evolutivo e que devemos voltar a saltar pelas árvores. Nada disso. Uma vez ultrapassados, os marcos da evolução da consciência sempre nos impulsionam para o novo, jamais para trás. Acontece que a verdadeira evolução avança em forma de espiral e é por isso que quando o caminho parece retornar a um determinado ponto, na verdade ele está sim passando novamente por lá – porém num novo nível, mais acima, numa nova dimensão.
Talvez essas poderosas plantas, que acompanham nossa espécie desde seu nascimento numa impressionante relação simbiótica, estejam agora nos oferecendo a preciosa oportunidade de mais um salto quântico da consciência, uma intensa transformação da mente e de sua interpretação da realidade – como fizeram nossos peludos antepassados em algum ponto de sua jornada. Agora, porém, diferente deles, possuímos razão e discernimento. Possuímos milênios e milênios de experiência sedimentados no inconsciente comum da espécie e temos nossos próprios erros para nos guiar.
Retornaremos à Mãe Terra e ao sagrado, sim, porque não há outro caminho se quisermos de fato sobreviver como espécie. Mas o faremos num novo nível porque agora estamos mais capacitados para enfrentar o grande mistério da vida, esse mistério que nos maravilha e assombra cada vez que olhamos para o sem-fim do mundo lá fora ou para o infinito interior de nós mesmos.
Ricardo Kelmer é escritor, letrista e roteirista e mora em São Paulo.
* artigo transcrito do site:
http://www.e-zen.com.br/oktiva.net/1279/nota/134443